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Textos Comunidade de Cristãos

Os Acontecimentos da Semana Santa (Emil Bock)

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ÍNDICE
PREFÁCIO 

INTRODUÇÃO 

Capítulo 1 
DOMINGO DE RAMOS

Capítulo 2 
SEGUNDA-FEIRA SANTA

Capítulo 3 
TERÇA-FEIRA SANTA

Capítulo 4 
QUARTA-FEIRA SANTA

Capítulo 5 
QUINTA-FEIRA SANTA

Capítulo 6 
SEXTA-FEIRA SANTA

Capítulo 7 
SÁBADO DE ALELUIA

CORRESPONDÊNCIAS COM A ÉPOCA ATUAL 

Apêndice 
O MOTIVO DA SAIDA NA NOITE DE QUINTA FEIRA-SANTA

DA VISÃO DO CRISTO 

 

PREFÁCIO


Caro Leitor:


Neste livro temos o resultado de anos de trabalho do Teólogo Emil Bock (1895- 1959), que participou do grupo Fundador da Comunidade de Cristãos (Movimento de Renovação) Religiosa). Seus vastos conhecimentos da Teologia e da História se tornaram frutíferos para uma renovação da Teologia como ciência através da Ciência Espiritual desenvolvida por Rudolf Steiner.

Apenas um capítulo de seu livro intitulado "Os Três Anos" está sendo agora colocado à disposição dos leitores brasileiros. Esse capitulo tem originalmente, também o nome "Os Acontecimentos da Semana Santa”. Trata-se, portanto, dos acontecimentos principais para se compreender o cerne do Cristianismo, que é a morte no Golgatha e a Ressurreição do Cristo. O método desenvolvido por Emil Bock para penetrar na realidade dos fatos contidos nos evangelhos está expresso no resultado deste livro.

Este livro trata de uma fase na vida do Deus-Homem na terra, e que não deveríamos confundir simplesmente com o de uma vida humana normal. A "Vida de Jesus" só pode ser contada até o momento do Batismo no Jordão até ali se trata de uma biografia humana. Os três anos, porém entre o Batismo no Jordão e o Acontecimento no Golgatha, exigem de nós, para ousarmos compreendê-los, uma certa maturidade interior. Ao tentarmos penetrar em algum acontecimento desses três anos, temos a nossa frente uma tarefa grande e difícil. Através disso, porém, pode-se chegar à compreensão dos Evangelhos.

Na verdade, temos nesses acontecimentos do Batismo no Jordão ao Golgatha, uma série de imagens da alma, que podemos seguir como a vida desse Deus-Homem. Nos evangelhos nos são dadas seqüências supra-sensíveis e anímicas desses acontecimentos, relacionados na esfera imaginativa de sua composição. Assim, um trabalho, para ser fecundo, ao tentar penetrar com a consciência nos conteúdos dos evangelhos, deveria durante anos, tentar assimilar e compreender os elementos imaginativos de sua composição: isto é a relação entre um acontecimento e outro, assim como nos surgem relacionados em cada um dos evangelhos. Assim se poderia com o amadurecer da alma nesse trabalho metódico e consciencioso chegar à compreensão de como esses acontecimentos se passaram no plano físico.

Assim, se espera que também o leitor desse livro possa chegar por si próprio através de um trabalho de leitura e reflexão sério, consciencioso e amadurecido, à compreensão e sentido da vida do Cristo para a humanidade.

Marcus Piedade


INTRODUÇÃO


A semana que precede a Páscoa é um período significativo que se destaca não apenas no ano Cristão, mas também no transcurso anual da própria Natureza. No ano cristão ela encerra toda a plenitude do drama da Paixão,  a grande parte final do Evangelho. Em diversas regiões ela é designada como “Semana do Silêncio" ou também como "Semana Magna”, revelando-se assim que só pode contar  com a realização da festa da Ressurreição quem é capaz de vivenciar  toda a grandeza da Semana Santa.

O significado da semana que precede a Páscoa no transcurso natural do ano reside na lua cheia da primavera. Rompe-se definitivamente o encanto do inverno a nova vida da Terra progride aos saltos, com um poderoso ímpeto seivas e forças começam a geminar e brotar no reino vegetal. Na luta entre o dia e a noite, o dia alcança a supremacia vitoriosa que se consolidará em triunfo da luz no primeiro domingo após a lua cheia da primavera.

O conteúdo evangélico da Semana Santa não coincide de antemão com a natureza primaveril. Pelo contrário, opõe-se-lhe em contraste agudo.

Somente no final, ao nascer o sol da Páscoa, ele desemboca em júbilo estivo que coincide com o rejubilar do milagre da primavera. O drama sério da Semana Santa é, no entanto a preparação dessa consonância. A primavera da natureza irrompe por si mesma. A primavera interior da festa da Ressurreição deve ser conquistada através da peregrinação ao longo das estações da Semana da Paixão.

Os sete dias que precedem a Páscoa podem ser comparados às doze noites santas do período natalino. O período “entre dois anos” é, para os que devotamente se entregam à trama do pleno inverno, a preparação adequada para os doze meses do ano novo. Os sete dias da Paixão dotam aqueles que participam, em atividade interior, do Mistério da Paixão, de novas forças para todo o seu destino.

Os acontecimentos que se passaram a 2000 anos na Semana Santa entre o domingo de Ramos e o domingo da Ressurreição foram revelações arquetípicas do destino que, a cada ano, conferem aos sete dias de cada semana um novo e mais elevado sentido e um cunho luminoso que plasma as almas.

Os dias da semana sempre contiveram as diversas cores e os sons das sete esferas planetárias, conforme revelam seus nomes nas línguas européias: Sol(domingo = Sonntag); Lua ( segunda-feira = Montag); Marte (terça-feira =  Mardi em francês); Mercúrio (quarta-feira = Mercredi); Júpiter (quinta-feira =  Jeudi); Vênus (sexta-feira = Vendred); Saturno (Sábado = Saturday). Naquela semana pré-pascal, entretanto, cada dia da semana recebeu, além da diferenciação cósmica, o cunho do pensamento planetário cristão.

Os dias da Semana Santa ainda não têm seu conteúdo plenamente realizado na sensibilidade cristã: o único a se impor foi a sexta-feira santa, com a concepção da cruz no alto do Gólgota: para uma parte da cristandade, esta imagem se estendeu a todas as sextas-leiras, transformadas em dias de jejum. Além da sexta-feira, somente o domingo de Ramos relacionou-se a uma imagem poderosa nas regiões onde é hábito o enfeite com ramos de palmeira: a imagem da Entrada em Jerusalém. Em realidade, porém, cada um dos sete dias revela um novo mistério cósmico sob uma forma humana e histórica.

Quando o Cristo entrou em Jerusalém no domingo de Ramos, o antigo Sol ainda reinava no céu, mas recebeu sua despedida a fim de que pudesse nascer, no domingo seguinte, o novo sol da Páscoa. Quando, na segunda-feira, o Cristo condenou a figueira e limpou o templo na Cidade Santa, o sol de Cristo se opôs ao princípio lunar, às forças lunares do Velho Mundo, necessitadas de uma renovação.

Quando o Cristo, na terça-feira, teve que discutir com os adversários que chegavam em grupos para induzi-lo a trair-se; quando ele teve que lutar com a arma do Verbo espiritual; e quando, finalmente, no ressoar vespertino dessas lutas, ele se retirou com seus discípulos para o Monte das Oliveiras e lhes abriu a visão profético-apocalíptica do futuro, o espírito de Marte também recebeu, por sua vez, o cunho do Cristo. Na quarta-feira, durante a Unção de Bethânia e a traição de Judas, Mercúrio encontrou-se com o sol do Cristo. E, na quinta-feira quando o Cristo lavou os pés dos discípulos e lhes ofereceu a Santa Ceia, uma auguriosa luz de Júpiter iluminou a aflição e a tristeza das almas.

Na sexta-feira santa ocorreu a mais milagrosa elevação de tudo o que pudera significar para o homem a idéia da deusa do amor; Vênus ou Afrodite: deu-se um ato de amor, maior do que qualquer ato de amor possível. O Sacrifício por amor em Gólgota foi a transformação do princípio de Vênus pelo princípio solar do Cristo. Quando o Cristo repousava no sepulcro, o sol do Cristo encontrou-se com o espírito de Saturno  no universo, até que, finalmente, no domingo, a própria oitava do sol nasceu no firmamento, o sol do Cristo, que vencera todas essas etapas de luta.

O drama do mistério da Semana Santa é uma unidade grandiosamente completa em si. Acompanha-se de um mistério de composição que se nos desvenda à medida que desenvolvemos o sentido em relação ao valor das etapas na vida de Jesus. O que aconteceu nos sete dias pré-pascais é uma condensação de toda a vida do Cristo. As mesmas leis originais e as mesmas etapas reveladas na sagrada biografia dos três anos ressurgem dramaticamente resumidas diante de nossa visão. A partir da semana da Paixão podemos reconhecer nos três anos da vida do Cristo toda uma grande Paixão. A Entrada em Jerusalém é uma oitava do Batismo no Jordão. Completa-se a entrada do Cristo em nossa existência terrena. Recebe seu cunho definitivo o mistério da Encarnação que se iniciara três anos antes.

Os acontecimentos da segunda-feira, a maldição da figueira e a purificação do templo correspondem à tentação do Cristo descrita pelos três primeiros evangelhos. O Cristo se defronta aí mais uma vez com as velhas forças lunares do mundo. Não lhe servem, ele as afasta e vence a tentação de usá-las. Não lhe importam os sucessos externos, importa-lhe completar sua missão. A limpeza do templo relatada no Evangelho de João pertence, como vimos, aos ecos da vivência da Tentação e, portanto, se situa no quadro das grandes correspondências da outra limpeza do templo relatada nos primeiros três evangelhos. E quando, na terça-feira, as réplicas na discussão com os adversários reluzem como golpes de espada e quando, à noite, os relâmpagos apocalíptico atravessam a conversa com os discípulos, repete-se, em um nível mais elevado, o que ocorreu quando Jesus teve que se separar de sua terra natal e de seus parentes de sangue em Nazaré, a fim de se dedicar ao parentesco espiritual, ao círculo de seus discípulos. O Apocalipse do Monte das Oliveiras corresponde ao Sermão na Montanha, no qual foi firmada a dedicação decidida à família espiritual. Aos acontecimentos da quarta-feira, unção em Bethânia e traição do Judas, corresponde, na grande vida do Cristo, a tragédia de João Batista. É a mesma crise, a mesma conjunção. O Lava-Pés e a Santa Ceia são a oitava, a última repetição decisiva, do mistério que já reluzira na alimentação dos cinco mil e na perambulação à beira do mar.

O que acontece na sexta-feira nada mais é do que a acentuação final e a realização total da Transfiguração da Montanha. O Sepultamento no Sábado de Aleluia leva mais adiante, no âmbito das decisões cósmicas, aquilo que estava encerrado na decidida partida para a Judéia, na partida para o campo de batalha da decisão. Na manhã de domingo da Páscoa confundem-se os dois círculos, o grande dos três anos e o pequeno dos sete dias. A Semana Santa como um todo corresponde, na vida do Cristo, à irrupção do sol que, dentro da Semana Santa, só ocorre na manhã do domingo da Ressurreição.


CAPÍTULO 1

DOMINGO DE RAMOS

No primeiro dia da Semana Santa, o Cristo entra na Cidade Santa. Apresenta-se-nos uma imagem irrelevante. Vemo-lo atravessar as portas da cidade montado em um burro, seguido por seus fiéis. Mas, como se fora o próprio Deus da primavera, sua entrada provoca repentinamente um êxtase na alma da multidão. É como se algo do antigo êxtase solar das festas pagãs, da primavera se apoderasse dos homens: acende-se uma faísca. Ao cortar ramos de palmeira, o povo renova um hábito muito antigo, volta-se, às festividades em honra ao sol no início da primavera, comuns entre os povos pré-cristãos.

Pois a palmeira sempre foi considerada a árvore e o símbolo do sol, do sol natural que no céu primaveril desenvolve uma força tão nova. O povo enfeita o caminho com símbolos solares. Será ele talvez realmente o alto amigo e senhor do sol, anunciado aos homens como o grande rei da luz? Deverá ser quebrado o encanto do significado espiritual original da cidade de Jerusalém, que abrigava, na montanha de Sion, um dos mais antigos templos do Sol, antes que o templo de Salomão, na montanha da Lua, superasse tudo em importância? Ressurgirá a época de Melquisedeque, o grande iniciado do rito solar? Parece mesmo que o Cristo encontrará agora o acesso à Humanidade. O alto espírito solar já habita há três anos um corpo humano, já atravessou destinos humanos, terrenos. Manteve-se afastado, em silêncio. Se aparecia uma vez ou outra, encontrava incompreensão e inimizade por parte dos homens. Será diferente, agora? Será que o destino levara agora diretamente a uma grande salvação, em meio a jubiloso êxtase?

Não, estamos no inicio da mais séria semana da História da Humanidade. Os mesmos homens que espalham ramos de palmeira e irrompem extasiados em gritos de hosana, gritarão fanaticamente,alguns dias mais tarde, cheios de ódio: "Crucificai-o!". Ao símbolo da vida, ramo de palmeira, virá se juntar o símbolo da morte, a cruz do Gólgota.

O próprio Cristo contribuiu para essa reviravolta.  Atravessa em silêncio, sério, o povo que vibra em êxtase. Percebe nesta recepção a sua superficialidade. Visa camadas mais profundas. Quer algo muito diferente.

Em termos humanos poder-se-ia perguntar, por que Jesus não ficou na Galiléia, sua terra, naquela época do ano em que justamente ao redor do Lago Genezaré eclodem os milagres de cor primaveris? Tivesse ficado na Galiléia não teria morrido. Mas podemos igualmente perguntar por que o Cristo, sendo Deus, não ficou nos mundos espirituais, nas esferas celestes? Não ficou nas bem-aventuradas alturas divinas. Deixou o céu e se fez homem. Realizou todo o sentido do seu ser através deste sacrifício, desta renúncia. Ao entrar em Jerusalém, sabendo exatamente que estava atirando a luva àqueles que tinham poder sobre ele, completava-se sua entrada no mundo terreno. No início da grave semana repete-se, ainda uma vez, em outro nível, aquilo que três anos antes significou o começo de sua vida terrena. Do mesmo modo que abandonara o céu, abandona agora a natureza paradisíaca da Galiléia.

Quando ele desceu do céu a terra, os homens nada perceberam. João Batista, que prestou o auxílio sacerdotal àquela encarnação na existência terrena, apenas supunha o que estava acontecendo quando Jesus de Nazaré tornou-se portador e continente do Cristo. Mas, através do Homem, o fato foi percebido. Ressoou a palavra: "Este é meu filho amado". Agora, no domingo de Ramos, nessa hora misteriosa, festivamente excitada, os homens o perceberam. À palavra que naquela ocasião ressoara apenas das alturas espirituais corresponde agora o "hosana" dos homens extasiados. Subitamente, os homens percebem, como em uma renovação instantânea da antiga clarividência, que não é apenas homem aquele que vem montado no burrinho. É como se a alma do povo se precipitasse para perceber o brilho irradiante, a aura solar que emana de Jesus de Nazaré. O ser divino do Cristo teve que se reter durante três anos, pois, se não fizesse, teria violentado os homens com sua força divina. Agora, no entanto, o fruto desta reserva é que o divino que se sacrificara, que se rebaixara entrando no humano, transforma-se em poderosa decisão volitiva. Primeiro, o divino ofuscava, escondia o humano na figura do Cristo. Agora, o humano arde em fogo divino. E é deste fogo de volição que parte a faísca que acende o entusiasmo da massa popular. A embriaguez de uma premonição primaveril se apodera do povo, mas este só sabe interpretar o fato politicamente.

O Cristo sabe melhor. Sabe que está trazendo algo à Cidade Santa, quintessência de toda a evolução pré-cristã da Humanidade: está introduzindo algo de totalmente diferente de tudo, até das maiores maravilhas que a Natureza terrena pode produzir. E uma semente de fogo que virá transformar o mundo pela base. A superfície bem pode estar agora concordando, excitada. Mas isto nada significa. Poucos dias depois veremos que a superfície pode imprecar tão bem quanto abençoar. Trata-se apenas de ondulações superficiais. A Natureza da terra em que penetrou o Cristo pelo batismo no Jordão só pode lhe dar, enfim, a morte. A cidade que grita "hosana" só pode finalmente crucificá-lo.

Salta a faísca, acende-se o fogo, mas o Cristo atravessa as ondas de entusiasmo sem alterar-se. Quer penetrar na camada mais profunda. Quantas maravilhas não nos doa o sol natural quando nasce de manhã e pare o dia! Mas o sol exterior, o sol antigo, relacionado apenas ao homem - ser natural, se põe todas as tardes. Após o solstício de verão, ele se afasta da terra, vem o outono e o inverno. O sol natural vem, mas vai, como a vida natural que sempre nasce e sempre morre. Às alegrias da infância segue-se sempre a dor da morte. Cada qual terá que morrer algum dia, por mais cheio de vida que tenha sido quando criança e quando jovem. O domingo de Ramos é o dia do velho sol. O domingo da Páscoa será o dia do novo sol. Este não é o sol natural, é o sol espiritual. Não se põe. É permanente. Pode até mesmo ser mais facilmente encontrado nas trevas de um destino grave, na miséria, na doença e na morte, do que no arrebatamento da alegria, da infantilidade despreocupada. O Cristo entra na velha Jerusalém. É domingo de Ramos. Mas ele traz para o mundo em ocaso, moribundo, a nova Jerusalém. Não acompanha a trilha primaveril do sol exterior. Por quê? Para acender, no mais íntimo da terra e da humanidade, o novo sol, o sol perene, fiel e onipotente. É este o caminho que vai do domingo de Ramos ao domingo da Páscoa, do velho ao novo sol.

Na história da entrada em Jerusalém reconhecemos o caráter falacioso de todos os estados extáticos. Todo entusiasmo apenas extático surge quando o homem obedece apenas à Natureza. É bom, sem dúvida, que sejamos capazes de vivenciar alegria e entusiasmo diante das imagens da primavera, no convívio com crianças, no encontro dos milagres da juventude e do amor. Certamente não gostaríamos de dispensar esse entusiasmo natural. Mas devemos saber e reconhecer que é perigoso confundi-lo com a própria vida. O entusiasmo apenas natural se origina, em realidade, do homem apenas corpóreo. Só em momentos ocasionais se ergue à altura do espírito. O verdadeiro entusiasmo, que persiste no "hosana" e não se transforma em "crucificai-o", não se forma de baixo para cima, mas de cima para baixo, nasce quando o espiritual se enraíza no ser humano, quando a faísca divina se realiza e se encarna na terra.


CAPÍTULO 2

SEGUNDA-FEIRA SANTA

No caminho que Jesus e seus discípulos fizeram todas as manhãs e todas as tardes da Semana Santa, da cidade para Bethânia à tarde ou vice-versa de manhã, existe um local tranqüilo que ainda hoje está envolto no denso ambiente de um mistério. Partindo de Jerusalém, atravessamos o cume do Monte das Oliveiras e, lentamente, descemos pela outra encosta, onde vemos brilhar, em meio ao deserto da Judéia, o espelho mágico do Mar Morto; a meio caminho entre o Monte das Oliveiras e Bethânia encontramos um local cercado por altos muros. Ciprestes negros despontam por trás dos muros e parecem graves e solenes sinais apontando para o céu. Havia aí, no tempo de Jesus, uma pequena vila: "Betfagé" (a casa dos figos). Não devemos imaginar uma aldeia como outras aldeias. O grupo de pessoas que para lá transferira sua vida comunitária era unido por um esforço psico-espiritual especial.

As modestas cabanas eram cercadas por um pomar de figueiras. Mas essas figueiras não eram apenas plantas frutíferas; eram, para aqueles habitantes, árvores sagradas, sinais visíveis de seus esforços espirituais. Tratava-se de pessoas que, em seu círculo, procuravam conservar o mistério (segredo) espiritual da antiga Humanidade, mistério que surge, uma vez, também no Novo Testamento, na história de Nathanael. Os moradores de Betfagé praticavam o "sentar-se sob a figueira", o estado vidente atingido através de exercícios, em parte físicos, em parte meditativos.

Betfagé, a casa dos figos, era um sítio onde se praticava a antiga clarividência. Foi de lá que Jesus, na manhã do domingo de Ramos, mandou Pedro e João trazerem o jumento e o burrinho. Lá existiam árvores sagradas e, do mesmo modo, animais sagrados. Os jumentos ali mantidos não eram animais de carga. Também eles expressavam um mistério naquele círculo de pessoas. Na corrente do Velho Testamento estava bem viva a memória daquele mago que fora mandado certa vez da Babilônia a fim de conjurar o impedimento de entrada do povo de Israel à Terra Prometida.

Bileam era descrito montado numa jumenta. Sabia-sé, no entanto, que montar em jumenta não era apenas um modo de locomoção. Expressava um bem definido estado de alma, a saber, aquele enlevo sonâmbulo sob o qual o mago babilônico começava a falar, não em estado de consciência humana, mas como que espiritualmente possesso: entretanto, sem que ele soubesse como, a imprecação mágica que ele queria lançar contra Israel transformou-se em bênção. Os animais sagrados de Betfagé revelam que a visão ali praticada era de natureza inconsciente e ligada à corporeidade física: aliás, até nos contos de fada mais recentes, o jumento é o símbolo do corpo físico humano.

O filhote de jumento, no qual o Cristo montou para entrar na Cidade Santa no domingo de Ramos, pertence à esfera de imagens de Betfagé. Mas, quando ele teve a audácia de entrar na cidade montado no branco animal sagrado, não foi ele quem mergulhou no estado bileâmico de “montar uma jumenta" quem caiu em alienação extática, ao vê-lo, foi à massa popular. Foi como se um linguajar bileamítico se apoderasse do povo quando este chamava "hosana" àquele que chegava no dorso do jumento.

À noite, Jesus, como também faria nas noites seguintes, fora com seus discípulos para Bethânia para repousar. Durante a noite, o eco do êxtase popular, gritando "hosana”, ergueu-se em sua alma. Ele e seus discípulos não são mais os mesmos como no dia anterior, ao voltarem do dia seguinte a Jerusalém. Novamente passam por Betfagé. Na fisionomia de Cristo lê-se algo de extremamente grave, inexorável. Acontece, então, o fato misterioso: ele se aproxima das figueiras de Betfagé. Os discípulos se admiram, pensando que ele quer comer figos quando não é época destas Frutas. E ouvem-no pronunciar a estranha e severa sentença: "Ninguém mais comerá destes figos, para todo o sempre". Talvez naquele momento apenas supuseram que era subtendido algo de mais importante do que uma simples afirmação sobre a árvore  e sua fertilidade. Mas não tiveram sua visão desvendada.

Os discípulos passam, então, um dia em Jerusalém com o Cristo, este dia que desenvolve dramaticamente toda a grave severidade. Ao atravessar a soleira do templo, irrompe o caos. Espalha-se o pânico, derrubam as mesas, o dinheiro rola no chão. Dá-se a inversão do êxtase jubiloso da véspera. O terror se apodera de todos os que estão na zona do templo.

Após pernoitarem novamente em Bethânia e, passando de manhãzinha outra vez por Betfigé, os discípulos subitamente têm a visão da árvore seca e pedem que Jesus lhes explique o mistério. Não aconteceu nenhum milagre grosseiro no qual Jesus teria, com suas palavras iradas, privado de vida uma criatura da terra. Como poderia ele ter destruído uma arvore pertencente àqueles que lhe haviam oferecido a jumenta e o filhote! O que aconteceu foi um ato espiritual que significa um importante entroncamento no drama do mistério da Semana Santa, nesse dia aparentemente de pouca importância.
No domingo de Ramos, embora a ressurreição do Lázaro desse o sinal para a luta decisiva, todo o ser do Cristo estava em atitude de dar, de oferecer.

Foi uma impressão positiva de seu ser que tocou as almas do povo. Devemos lembrar-nos também no simples significado humano do momento. Jesus foi ao Templo para orar e sacrificar como os outros fiéis, preparando a festa da Páscoa. Mas a previsão de importantes decisões apoderou-se de todo o seu ser. Impossível continuar inofensivo. A aura volitiva de seu sei, lançando faíscas de luz, contribuiu para induzir o povo na visão extática de sua grandeza solar. O Cristo perscruta a superficialidade e inconstância deste entusiasmo apenas natural, mas ainda não tem um pretexto para realizar sua defesa e seu contra-ataque. O povo tem razão. Não clamariam "hosana" se não tivessem percebido algo de seu verdadeiro ser. Ele não pode dizer que estão errados, como se confirmará no dia seguinte ao repetir-se a cena na zona do templo. Desta vez é um grupo de crianças que grita "hosana" porque um raio de seu verdadeiro ser penetra em suas almas. Os adversários perguntaram, astutos: "Que dizer quanto ao fato de crianças te aclamarem com "hosana"? Ele retruca: "Jamais lestes nas Escrituras, o trecho: da boca dos inocentes preparei-lhe louvores"?

Mas agora ele passou a noite em Bethânia. Tornou certa distância da vibração do domingo de Ramos. Aproxima-se das figueiras de Betfagé. Quer mostrar aos discípulos o quanto vale o "hosana" da véspera. Fora apenas o último fruto da árvore da antiga clarividência. Um resíduo da antiga força visionária ligada à natureza e ao corpo. Através das palavras que ele fala à figueira, ele renega todo o mundo das velhas visões extáticas. Sentimos algo de uma grande decisão para a humanidade. Jesus desvaloriza o "hosana" do povo e, ele mesmo, induz a transição para o "crucificai-o"! Ele possui a incrível coragem de aceitar e, pessoalmente aduzir a cegueira espiritual pela qual os homens deverão, fanaticamente, exigir sua morte. Para ele é mais importante que a humanidade trilhe os seus caminhos da consciência que, embora trágicos, a levarão à liberdade; embora sabendo que esta necessária cegueira espiritual levará os homens a crucificá-lo.

Quando os discípulos, na terça-feira de manhã, revêem as figueiras de Betfagé, os acontecimentos da segunda-feira só afastaram o sonho dos seus olhos. Perderam uma ilusão. Experimentam uma salutar sobriedade. Onde ainda há pouco viam um alto valor, vêem agora a imagem da árvore seca. A antiga clarividência ligada ao corpo era um dom da Lua, uma intervenção de forças lunares na natureza humana. Era relativo à noite, porque estava á disposição dos homens em estados inconscientes. Agora os discípulos percebem que as forças resumidas na imagem da figueira estão velhas, ultrapassadas.

O que Jesus lhes ensina agora é um prelúdio daquilo que lhes dará na misteriosa noite da mesma terça-feira no alto do Monte das Oliveiras. Revela-lhes que a humanidade alcançará algum dia uma nova vidência. A “fé” é o germe da nova visão. Jesus diz aos discípulos: "Se tiverdes um grãozinho de fé, sereis capazes de tudo. Bastará que digais a esta montanha- afasta-se, e ela se afastará. A visão se liberta; a montanha do mundo sensorial, que vos oculta a visão desaparecerá. Através dos rochedos da existência terrena, percebereis a verdadeira essência de origem divina das coisas”. A visão antiga era de natureza lunar, a nova será solar. A força solar da fé fará abrir-se no coração humano o olho da nova visão, como diz o trecho das bem-aventuranças: “Bem-aventurados os puros de coração, pois eles verão Deus”. Entre a visão inútil e a nova visão do coração que se torna solar, situa-se o período das trevas, da cegueira diante do espírito. E a partir desta cegueira espiritual, os homens crucificarão o Cristo.

Na segunda-feira santa o Cristo se defende de uma tentação. Se ele atasse sua atividade aos antigos estados de alienação clarividente, ele poderia ser reconhecido pelos homens. Não o aclamariam apenas com "hosana", mas o escolheriam como rei. Revela-se agora, definitivamente, que o Cristo não quer atar-se ás velhas forças. Trata-se para ele única e exclusivamente de fazer com que a humanidade encontre o caminho da consciência e da liberdade. No começo dos três anos, ele enfrentara a tentação de transformar morte em vida. Agora, no final de sua caminhada, na defesa contra a tentação até mesmo executa isto, de transformar vida em morte. Não é uma maldição, por carência de amor que ele executa nas figueiras daqueles que lhe oferecem a jumenta e o filhote. Não! O efeito parte da sua essência. Ele é o sol. E, quando nasce o sol, a lua empalidece. Assim empalidecem as forças lunares da antiga vidência. Revela-se que elas não têm futuro quando nasceu o sol da nova luz da alma.

O Cristo chega  à praça do templo, o antiqüíssimo e sagrado morro da Lua na mais velha cidade da humanidade. Já se inicia ai o grande movimento da Páscoa. Já aparecem muitas centenas de peregrinos. Ao redor do templo praticam-se compras, vendas, pechinchas e negócios. E, no próprio recinto do templo, reina uma atividade febril, pois o conteúdo das cerimônias pascais será o oferecimento de animais e o sacrifício da ovelha pascal. Isto permite fazer negócios porque tudo o que será sacrificado tem que ser primeiro comprado. E, por isso, formou-se uma quermesse no lugar onde deveria reinar o mais sagrado ambiente cultural. O velho Hannas, o mais notório “pão duro” da História, sabe fazer negócios. Já extraiu enorme fortuna do mercado do templo. Como presidente do conselho de altos sacerdotes saduceus, Hannas é também a força motriz dos compromissos políticos nos quais se baseiam os negócios ligados ao templo. Para comprar, os peregrinos devem cambiar o dinheiro que trouxeram de todos os países, em moeda oficial, nacional. Ora, esta moeda é de César. E, portanto, o local de vendas é, ao mesmo tempo, uma bolsa de valores romana. Admitiam-se os funcionários e alfandegários romanos, embora se soubesse que eram fiéis ao culto dos césares. Permitia-se-lhes o acesso, temendo que, caso contrário, os romanos pudessem roubar o Santíssimo do templo. E, assim estabelecera-se uma extrema materialização e profanação daquilo que fora uma vida puramente cultural. Na  imagem da figueira seca, os discípulos viram a decadência da antiga consciência religiosa. Na imagem do mercado que se expandia na zona do templo revelava-se a decadência do culto religioso.

É neste local que penetra o Cristo. Vem para cumprir os ritos da festa. Mas o fogo, as faíscas de sua seriedade produzem efeito. Ele nem precisa falar muito: os homens são logo tomados de pânico. A pessoa de Cristo lhes revela, de modo terrificante, a decadência em que caíram. No começo dos três anos, na primeira festa pascal, sucedera algo semelhante. O efeito de grande terror partira então do caráter divino do Cristo, não obstante a grande reserva que Jesus ainda se impunha. Mas, agora, a divindade, nele, se transpôs inteiramente em caráter humano. Transformou-se em flamejante intensividade volitiva. Ele tem direito a arrancar a máscara do mundo degenerado do templo e a desencadear a tempestade. Sua atitude chega a ser em si mesma uma defesa contra a tentação, a saber, a tentação de permanecer atado ao antigo estado das coisas. Torna-se agora bem claro: o que poderá dar à humanidade em futuro espiritual só pode ser algo de radicalmente novo. No campo da consciência humana a Vidência lunar tem que morrer, mesmo que isto acarrete uma penosa caminhada pelo deserto. O futuro só poderá florescer pela fé, pela vidência solar do coração. Também na esfera do culto, o antigo tem que ser despedido sem escrúpulos. Nada pode mais ser ligado ao antigo, por mais venerável que este tenha sido. Algo novo tem que entrar na vida. É o sol do Cristo que apaga no morro lunar Morija a luz da lua. O sol rechaça os fantasmas noturnos. A zona do templo, grandiosamente situado com vista para o mundo é silenciosamente substituída no morro Sion, na modesta sala da Santa Ceia, pelo germe de um novo fluxo cultural, solar. A religião da Lua é substituída quando na quinta-feira santa, o Cristo oferece pão e vinho aos discípulos no morro solar de Sion.

 

CAPÍTULO 3

TERÇA-FEIRA SANTA

Em silêncio,  sem provocar as mesmas excitações, realiza-se nas manhãs seguintes o mesmo que no domingo de Ramos. Jesus entra com seus discípulos na Cidade Santa. Já se acalmaram as grandes ondas de entusiasmo aprovador. Jesus, embora já envolvido nos relâmpagos e tensões da decisão que se aproxima, quer obedecer a lei até o fim. Cumpre o rito sagrado de preparação para a festa pascal. Traz suas oferendas. Mas já sentimos: é ele mesmo que será sacrificado e elevado ao céu. As inimizades e o ódio das pessoas o atingem. No domingo ainda podia parecer que o sol espiritual que nele ascendia sobre o horizonte do drama estivesse em coincidência com o sol natural que acende o entusiasmo primaveril nas almas dos homens. Mas, na segunda-feira, o engano se esclarece. Na terça-feira santa, o drama-mistério ultrapassa a simples despedida do velho mundo. Jesus marcha cada vez mais majestoso para a cidade. Quanto mais silenciosa a massa, tanto maior o ardor da volição (vontade) na fisionomia do Cristo. Nasceu o dia de Marte: inflama-se a luta. A massa calou- se: seus líderes têm medo e o medo é a raiz do ódio, que passa  à agressão. Cada tropa do exército inimigo envia na vanguarda seus atacantes.  Um grupo após o outro aborda o Majestoso. Sucedem-se as perguntas traiçoeiras. Disfarçam sob a forma de questões aquilo que deveria ser um golpe na face ou um golpe de espada. Chegam primeiro os sacerdotes, os sábios das escrituras e os presbíteros, ou seja, todos os membros do Sinédrio judeu. Mandam perguntar a Jesus com que autoridade age. Exigem que se identifique chegam depois outros os, fariseus, com os seguidores de Herodes, e pousam a questão embaraçosa: “É justo pagar tributo a César?". Seguem-se os saduceus: querem saber o que pensa Jesus sobre a ressurreição dos mortos. Finalmente, chega um indivíduo que, acreditando poder comprometê-lo perante todo o povo, pergunta qual é, em sua opinião, a mais nobre das leis. Esses ataques, representando a atração das inimizades, constituem a melhor prova de quão intensamente era sentida a majestade de Cristo. Os cães só latem e mordem quando têm medo. Assim também essas questões, em realidade golpes de ódio, partem do medo. As forças das trevas tremem porque está nascendo o sol.

Jesus responde a cada uma das quatro questões. Mas não se contenta em aparar os golpes investidos contra ele: aceita o desafio e luta com as armas do espírito. Desenrola imagens potentes. Do mesmo modo que nos três anos passados falava aos discípulos em parábolas maravilhosamente poéticas, responde agora aos seus adversários em parábolas de combate. Conta a parábola dos  viticultores aos quais fora confiado o parreiral e que se recusam a entregar a safra, matam os mensageiros do dono das parreiras e, finalmente, até seu próprio filho. Os adversários sentem a potência combativa da parábola. Sentem que se refere a eles próprios. De fato, Jesus prediz aos seus inimigos, pela parábola, que eles o matarão. Ele não o faz para ganhar fama de profeta. Sua parábola é uma luta final pelas almas de seus adversários. Quiçá elas ainda desaparecerão. Quiçá ainda serão aterrorizados pela visão de si mesmos.

O Cristo lança aos seus adversários mais uma parábola: a parábola do casamento real. É inestimável a grandeza micaélica desta parábola combativa. Trata-se daqueles que seriam indicados como convidados. Todos falham. O convite é feito, então, a estranhos, a gente que, normalmente, nem seria levada em consideração. Os estudiosos oficiais de Deus revelaram-se como mentirosos e hipócritas, e a Divindade apela então para pessoas cuja aparência não revela estarem à procura de Deus. Isto se dirige diretamente contra os adversários, contra os eclesiásticos privilegiados pela tradição. Ao ser descrita, enfim, a imagem e o destino daquele que não estava usando roupa adequada para a festa, toda a humanidade pode ver-se em rigoroso espelho. Mas, mesmo dirigida, em última análise, contra todos, a parábola das bodas reais é, sem dúvida o mais potente golpe desferido no dia de Marte da Semana Santa.

O Cristo prossegue. Ele mesmo dirige agora uma questão àqueles que lhe pousam perguntas capciosas: "De quem é filho o Messias? "Respondem: É filho de Davi". O Cristo tem que lhes mostrar, citando o 110º salmo que eles conhecem, no qual Davi designa o Messias como seu senhor. E pergunta: “Como pode ele chamar o Cristo de seu senhor quando se trata de seu filho?” O Cristo desmascara os que o cercam como estranhos ao espírito e sua devoção como desprovida de espiritualidade. Os homens só olham para o terreno. Para compreender o divino, a primeira condição seria ver que o Messias é filho de Deus e não dos homens. O Cristo mostra aos homens o que deveriam reconhecer nele; mas não o reconhecem.

E vem, então o quarto contragolpe pelas armas espirituais do Cristo: os nove "ai-de-vós” sobre os fariseus, desembocando na lamentação sobre Jerusalém, mundo destinado ao declínio. No início de sua atuação, Jesus, no círculo familiar de seus discípulos, pronunciou as nove bem-aventuranças do Sermão da Montanha, revelando as nove partes do Ideal Luminoso do homem-espírito. Agora, no final de sua via terrena, ele põe as nove sombras ao lado das nove luzes. Os "ai-de-vós" são o desmascaramento combativo da humanidade inimiga de Deus, assim como as bem-aventuranças foram a revelação das nove faces do relacionamento entre o homem e Deus. A lamentação sobre Jerusalém inverte a palavra do Sermão da Montanha sobre a "Cidade na Montanha" que, pela primeira vez, fez reluzir a imagem da Jerusalém celeste.

Eis um conteúdo bem pouco silencioso para a "Semana do Silêncio". Os golpes de espada cintilam de um lado e de outro. Luta-se e briga-se. O poder marcial do Verbo se precipita da boca daquele que mais tarde não se lamentará ao carregar a cruz para o alto do Gólgota.

Ao declinar o dia, quando Jesus com seus discípulos, como todas as tardes, deixa a cidade e, do outro lado do vale de Kidron, galga o Morro de Getsemane através dos jardins onde tantas vezes ensinara na intimidade do círculo de seus discípulos, desta vez não dirige seus passos para Betfagé e Bethânia. No alto do Monte das Oliveiras, em meio a maravilhoso bosque da paz, convida os discípulos a se acomodarem. Ainda estremecendo da luta que travou durante o dia, começa a falar aos discípulos pela última vez ao ar livre. E as palavras destes ensinamentos não são certamente menos poderosas do que as palavras de combate espiritual contra os adversários. Os corajosos atos da alma realizados durante o dia conclamam o eco dos deuses. O Cristo é capaz, mais do que nunca, de oferecer revelações aos discípulos. O que lhes oferece nesta noite - costumamos chamá-lo de “Apocalipse do Monte das Oliveiras" - é uma intervenção nos grandes futuros dos destinos da humanidade. Rasga-se a cortina do futuro. Abrem-se grandes perspectivas apocalípticas.

É sempre assim na vida. Quando o dia registrou verdadeiros atos, a tarde e a noite convocam o eco celeste destes atos. Os resultados do dia não residem unicamente naquilo que foi diretamente criado; quando a atividade diurna bateu às portas do mundo espiritual, podem abrir-se, à noite, as portas de um outro mundo. E (deste mundo espiritual) flui o correspondente a genuína força interior  empregada durante o dia.

O presente torna-se transparente. Os discípulos passaram o dia com o Cristo contemplando o templo. Revelou-se que tudo isso está condenado a desaparecer. A destruição de Jerusalém e do templo é uma necessidade espiritual. Se não fosse executada, 40 anos depois, pelos romanos, teria que ser consumada de alguma outra maneira. Na visão que surgiu do declínio do templo transparece a visão de uma grande catástrofe. Todo um mundo submerge. O Cristo pinta, aos olhos dos discípulos, as cores de um ocaso do mundo. E se, durante o dia, se anunciava uma separação dos espíritos em inimigos de Cristo e em um pequeno grupo disposto a formar o apostolado, este fato também se torna transparente: todo o transcurso da História Universal nada mais será do que uma seleção dos espíritos. Alguns tendem pala o divino, os outros tendem contra ele. E por mais imponentes que sejam as realizações destes últimos na terra, tudo não passará de produtos de um medo oculto. E aquilo que, silenciosamente, germinará no grupo - talvez pequeno - daqueles que se unem ao divino portará em si o futuro do mundo.

Jesus continua o apocalipse vespertino que apresenta aos discípulos. Como lançara aos adversários parábolas combativas, assim dá aos discípulos as mais íntimas parábolas que lhes poderia dar: as duas parábolas de sua volta. No apocalipse já dissera que, sob o bramir do temporal universal, o Filho do Homem aparecerá sobre as nuvens do céu. Apontou para um futuro no qual, em meio ao barulho do fim do mundo, a nova revelação do Cristo terá que abrir caminho. Agora, ele mostra aos discípulos, nas parábolas das dez virgens e dos talentos (dinheiro) confiados, o que devem fazer os homens a fim de se preparar para a volta do Cristo. Um dia chegará o noivo da alma. Um dia voltará àquele que, ao partir, confiou aos seus servos o dinheiro; voltará para exigir as contas. Embaixo, no templo, os “ai-de-vós" ressoaram como antibem-aventuranças. Agora o dia desemboca em um elevado Sermão da Montanha. Com os últimos e mais íntimos ensinamentos, o Cristo fornece aos discípulos uma provisão de coragem para milhares de anos. As parábolas do retorno e, especialmente, a visão final da seleção dos espíritos em ovelhas e bodes, na qual finaliza todo o Apocalipse do Monte das Oliveiras, são uma provisão que manterá os discípulos através de muitas encarnações. A luz do apocalipse, que ilumina a noite que desce, é o dom solar conquistado de Marte.

As palavras pronunciadas pelo Cristo na terça-feira santa são, em conjunto, uma maravilhosa linha de orientação para toda luta entre as trevas e a luz, para toda luta pelo apostolado de Cristo contra os inimigos de Cristo. A palavra de Goethe, afirmando que toda a história mundial nada mais é do que uma luta constante da fé contra a descrença, já representa uma procura pela chave fornecida em detalhe pelo transcurso da terça-feira santa. Toda oposição contra o Cristo e toda inimizade contra o espírito tem suas raízes na incredulidade, em uma falta de força, em um medo profundamente oculto na alma humana. O apostolado de Cristo se afirma e mantém através da fé germinando força-coragem interior. A campanha cuja estratégia pode ser deduzida do conteúdo da terça-feira santa não é, entretanto, em primeiro lugar, uma campanha de guerra entre dois mundos humanos. É uma luta que deve ser travada interiormente. Em toda alma humana misturam-se o medo e a coragem, o oponente e o discípulo do Cristo.

As parábolas combativas dirigidas aos oponentes expõem sempre o medo como raiz da inimizade contra o espírito. O egoísmo dos viticultores que não queriam entregar o produto da safra é, como todo egoísmo, um produto da fraqueza e do medo interior. Nasce no homem o primeiro germe de coragem quando ele aprende a tudo abandonar e tudo sacrificar porque se compenetra do sentimento de que tudo o que possui e pode possuir pertence à Divindade.

Os "ai-de-vós” são de modo especial, o desmascaramento da descrença. Iniciam-se pelas palavras que, de imediato, arrancam a máscara não só à renegação do espírito, mas também a qualquer tipo de tutela sobre as almas humanas: “Ai-de-vós”, escribas e fariseus! “Desviastes as chaves das portas do céu, onde não podeis entrar e, portanto, não quereis que entrem os que se esforçam para entrar!”

A maior coragem é a exigida pelo trabalho na própria alma. “A luta contra si mesmo é a mais difícil das lutas. Vencer-se a si mesmo e a mais bela vitoria”. Na luta travada no interior de nossa própria alma, conquistamos os mais maduros dons das forças marcianas. Já na parábola combativa das bodas reais reluz na imagem do traje matrimonial, o ideal da autotransformação meditativa. A alma que adquire luminosidade através da purificação e da oração é o traje matrimonial.

Mais ainda, as parábolas das dez virgens e do dinheiro confiado são uma provisão para o trabalho interior. O óleo nas lâmpadas é uma imagem das forças que devem ser adquiridas pela alma; o dinheiro confiado simboliza os órgãos espirituais desenvolvidos no ser humano.

A resposta dada pelo Cristo à questão dos impostos revela como se impõe a genuína coragem adquirida através do esforço interior. Quem se esforça de maneira salutar pelo espírito, não se distancia na terra, mas sabe manter o equilíbrio  entre deveres terrenos e ideais espirituais e, justamente assim,  adquire a soberania solar sobre tudo o que é terreno. É capaz de dizer, mesmo se, como era o caso naqueles dias, o trono está ocupado por uma fera: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”.

Na grande visão final da seleção dos espíritos revela-se, finalmente, o segredo da coragem interior. "O que fizestes a qualquer um de vossos mínimos irmãos, a mim o fizestes". O fato de um homem estar trilhando corretamente o caminho de sua alma e de seu espírito revela-se em sua capacidade de amar. Amor é o verdadeiro antônimo do medo. Todo verdadeiro esforço ou tendência em direção ao espírito começa pela coragem interior e desemboca no amor. O verdadeiro amor pelos homens é idêntico ao amor pelo próprio Cristo. Os poderes marciais do dia são, embora caia a noite, totalmente irradiados pelo do Cristo quando  todas as palavras de luta espiritual culminam a palavra amor.

 

CAPÍTULO 4

QUARTA-FEIRA SANTA

Em realidade, a Semana Silenciosa só o é a partir da sua metade. No domingo de Ramos, estremece o ambiente psíquico de toda a cidade; na segunda- feira são derrubadas as mesas dos vendedores e cambistas no templo na terça-feira, golpes de espada são trocados na luta espiritual entre o Cristo e seus adversários. Somente a última parte da semana é invadida pelo mistério do silêncio, embora seja um silêncio cósmico-dramático aquele que, na noite de quinta-feira, envolve a mesa da ceia e, mais ainda, aquele que cerca a morte do Cristo na cruz, e o que reina sobre o sepulcro. Lembremos apenas o terremoto que parte das profundezas da terra na sexta-feira santa. Entretanto, a parte do Cristo nos acontecimentos passa ao silêncio na segunda metade da semana enquanto na primeira metade ainda estava totalmente envolvida no ruidoso primeiro plano. O dia que chamamos de “Mittwoch” por representar o meio (Mitte) da semana, mas que, em outras línguas, é designado como dia de Mercúrio, conforme o efeito planetário que o rege, dia mercurial ou do movimento vivo, este dia estabelece de maneira significativa a transição entre os dias ainda não silenciosos da Semana do Silêncio e os dias em que se entretece o crescente mistério do silêncio do Cristo.

Ao cair da tarde deste dia, destaca-se uma cena que já teve suas similares nos dias anteriores, mas agora, no dia do meio e do equilíbrio, alcança um significado especial. O Cristo voltou do movimento da cidade para o local tranqüilo além do Monte das Oliveiras, voltou para Bethânia. Encontra-se entre aqueles aos quais está particularmente ligado. Os amigos lhe preparam uma refeição. Nas outras noites também houve refeições, mas hoje é como se já incidisse na sala um prenúncio da luminosidade que incidirá sobre a ceia da noite seguinte. Há em meio aos comensais como que um presságio da Santa Ceia.

A aldeia de Bethânia, por tranqüila que seja, foi, ainda há pouco, o cenário daquele acontecimento que significou o sinal para a luta: a ressurreição do
Lázaro. Lázaro é um dos comensais. É ele que, na noite seguinte, conforme descreve o Evangelho, estará encostado ao coração de Jesus. É ele que, no círculo da Santa Ceia, está interna e externamente mais próximo do Cristo. Entre os comensais, há também duas mulheres designadas pelo evangelho de João como irmãs de Lázaro, Marta e Maria Madalena. Ingressaram através de algumas circunstâncias do destino neste círculo que é mais uma família espiritual do que uma família por laços de sangue. Na vida de cada uma dessas três pessoas, há um acontecimento que provocou uma transformação fundamental. Para Lázaro, foi a ressurreição do sepulcro na rocha, a grande libertação do espírito de João para seu vôo-de-águia pelas alturas.

Para Maria Madalena foi um acontecimento mais remoto, designado pelo Evangelho como um exorcismo. Foi curada de uma trágica e fatídica alienação e experimentou a libertação e purificação de sua alma. No caso de Marta também ocorre um evento semelhante, conforme a tradição cristã: a cura da mulher hemofílica. O destino havia introduzido em sua vida uma doença que impedia seu organismo de manter suas forças. Através do encontro com aquele que pôde curá-la, uma força de coesão, força plasmadora instalou-se em seu corpo, como se instalara na alma de Maria Madalena, a paz interior. Foram através das curas do espírito, da alma e do corpo que os três irmãos de Bethania se tornaram amigos íntimos do Cristo.

O primeiro acontecimento sempre designado como característico da quarta-feira santa foi o seguinte: ao estarem todos reunidos à mesa, Maria ungiu os pés do Cristo com um precioso óleo e os enxugou com seus cabelos. O evangelho de João relata que o perfume do sacrifício impregnou toda a casa.
Maria Madalena já fizera algo semelhante um ano e meio atrás, quando fora salva pelo Cristo. Também naquela ocasião, segundo o evangelho de Lucas, ela, espontaneamente, para manifestar sua gratidão, ungira os pés do Cristo e os enxugara com seus cabelos. Na introdução do relato sobre a ressurreição do Lázaro, o evangelho de João (11, 2) recapitula esta cena. O que é revelado pelo ato de Maria Madalena que o evangelho de Lucas, ao relatara primeira unção, designa como grande pecadora e que talvez tenha realmente sido, conforme dizem as velhas tradições, uma prostituta perseguida por demônios no mundano balneário de Tibéria, perto de sua terra natal, Magdala! A unção é típico ato sacramental. A alma de Maria Madalena se ergue ao nível de praticá-lo. E, portanto, o Cristo, quando os outros declaram insensata esta atividade e se impacientam, pôde pronunciar palavras como se aceitasse o ato dessa mulher como um sacramento de morte, como uma extrema-unção. Na primeira unção ele dissera: "Calem-se. Ela amou muito e muito lhe será perdoado".

E adivinhamos como Maria Madalena conseguiu transformar as forças do amor natural, as forças terrenas do amor, que podem também desviar-se para a aberração, como conseguiu interiorizá-las e transformá-las em devoção, em intenso sentimento religioso e em capacidade sacramental de sacrifício.
Uma nota em falso interrompe o silêncio solene. Surge um personagem diametralmente contrastante com Maria Madalena. É um dos discípulos que perde o controle e a contenção ao ver o ato de Maria Madalena. É o Judas. Alega, na verdade, que seu protesto se baseia em considerações práticas e sociais. Diz que o dinheiro desperdiçado em óleo poderia ser dado aos pobres, aliviando muita miséria. Mas o evangelho de João já nos permite perceber nitidamente que os verdadeiros motivos de seu comportamento não são idênticos aos que ele propõe. Em realidade, é algo muito diferente que se passa em sua alma. O evangelho não o poupa, designa-o como ladrão. Vemos: justamente o aborrecimento sobre o ato de Maria Madalena dará ao Judas o último impulso para a sua traição. Excitadíssimo, há muito tempo espera pelo surgimento público de Jesus e pelo milagre político que ele acredita será a conseqüência desta aparição. Tudo o que leva ao silêncio da interiorização lhe parece, em sua impaciência febril, como sendo desperdício de tempo. Em Bethânia ele perde a paciência. Descontrola-se e sai para se juntar àqueles que perseguem o Cristo. O segundo conteúdo clássico da quarta-feira santa é a traição de Judas.

O motivo planetário do dia lança uma luz sobre as duas figuras tão contrastantes à mesa do jantar em Bethânia. Ambos, Judas e Maria Madalena, são figuras tipicamente mercuriais e têm mobilidade e temperamento. Possuem a qualidade de não serem enfadonhos. Ao seu redor sempre algo acontece. A roda das suas vidas não pára. Mas, Maria Madalena domina a intranqüilidade. Transforma-a em devoção, em paz, em capacidade de amor. A figura de Maria Madalena permite reconhecermos que a verdadeira e valiosa devoção só se instala quando é conquistada por uma alma vivaz, para a qual a paz não é mera inércia, mas vivacidade libertada, interiorizada. Maria Madalena foi muito manejada, sofreu muita coisa e atravessou muitas trevas. Mas, de toda intranqüilidade que houve em sua vida, flui agora sua intensa religiosidade. Será esta intensidade que a destacará em seguida entre todos os outros! Será ela a primeira a ter a visão do Cristo ressuscitado!

Judas é o outro homem mercurial. É, aliás, o tipo do homem irrequieto, que precisa sempre exercer uma atividade exterior. Alega querer agir em prol dos pobres. A atividade social, por boa e louvável que seja, é freqüentemente apenas um auto-entorpecimento. O impulso nem sempre reside em um autêntico ímpeto social, mas muitas vezes, na própria intranqüilidade interior. Muitas pessoas ficariam profundamente infelizes se fossem obrigadas a passar algum tempo inativas. Revelar-se-ia então, que a atividade social não é uma real produção interior, mas que elas cedem apenas a uma fraqueza inconfessada. Em Judas vemos este tipo de alma mercurial desembocar na mais tenebrosa fatalidade. Nele, a intranqüilidade nasce de um medo profundamente oculto. De modo semelhante ao que acontece nos adversários, nele rumoreja a intranqüilidade do medo essencial. Este é que acarreta sua traição do Cristo. A partir de tal estado de alma, o homem não pode ser devoto, não pode, em particular, amar. Um homem intranqüilo não é capaz de amar. O amor só é possível quando a alma já adquiriu a força da paz. E vemos assim nas duas figuras, de Maria Madalena e de Judas, dois caminhos que se separam como em uma encruzilhada. Um deles leva à proximidade do Cristo, o outro ao abismo da loucura, à tragédia do suicídio.
Marta, a outra irmã de Lázaro, é uma espécie de transição entre Judas e Maria Madalena. O evangelho de Lucas não relata em vão, em trecho anterior da vida do Cristo, a história de Maria e a de Marta. Marta é eternamente ativa. Não pode abster-se de empreender, a todo momento, algo de útil a serviço de alguém. Não podemos deixar de reconhecer a autenticidade de sua dedicação. Mas, tampouco, podemos deixar de ver a intranqüilidade física da qual foi curada, mas permaneceu existindo em sua alma. Maria que ouve em silêncio reverente é designada, em comparação com Marta, como aquela que escolheu a melhor parte.

As figuras da cena da quarta-feira santa nos mostram a encruzilhada que encontramos antes de podermos esperar sermos admitidos na esfera da quinta-feira santa. Diante do mistério sacramental, separam-se os caminhos. Judas é o homem sem culto. Ao se deparar com um ambiente de verdadeira devoção cultural, ele não fica só irrequieto, mas perde a contenção. Maria Madalena é a alma sacramental.
Na noite seguinte, quando o sacramento se estenderá sobre o circulo de discípulos como uma cúpula celeste, revelar-se-á quem é mais Maria e quem é mais Judas.

Mercúrio, deus da cura no mundo greco-romano, mas também deus dos comerciantes e dos ladrões, aproxima-se do sol do Cristo. A cena em casa de Lázaro e de suas irmãs em Bethânia mostra como o deus da cura Mercúrio, pode ser curado pelo sol do Cristo.


CAPÍTULO 5

QUINTA-FEIRA SANTA


Duas vezes por ano uma quinta-feira se destaca com uma luz singularmente festiva no decurso do ano: o dia que precede a sexta-feira santa e o dia da Ascensão. Embora pertencente à semana mais séria do ano, a quinta-feira santa se relaciona misteriosamente com a outra quinta-feira, seis semanas mais tarde, quando toda a natureza primaveril já se desenvolveu em luz e perfume emitidos pelas flores. Não seria a quinta-feira santa ocultamente uma segunda véspera de Natal? Sua luz misteriosa é a do crepúsculo que precede as trevas da sexta-feira santa, mas é também, mais ainda, a aurora da Páscoa.

Após ultrapassarmos o meio da semana santa, após os três primeiros dias repletos com a ruidosa e dramática luta com o ambiente, incompatível com o Cristo, desce o silêncio. Na noite da quinta-feira santa penetramos na esfera do silêncio sagrado. De repente, o barulho cede ao silêncio. De dia, os ruídos do povo em movimento nas ruas, milhares de peregrinos a comprar e a discutir atingiram seu auge.

Depois, pouco antes do ocaso do sol, esfera purpúrea, e enquanto nascia do outro lado, a enorme lua cheia prateada, as trombetas do templo deram o sinal para o início dos preparativos. Inicia-se a noite do Passah durante a qual os fiéis da Velha Liga se preparam para o sábado de Passah que se iniciará na noite seguinte. Cessa o barulho retumbante. Nas casas logo se reúnem os parentes ao redor das mesas a fim de comerem o cordeiro pascal. As ruas ficam subitamente vazias. Desce um silêncio oprimente. É a magia da noite de Passah, na qual circula, como outrora no Egito, o Anjo Exterminador.
Jesus com seus discípulos também se retira para a sala onde terão a ceia do Passah. Os destinos querem que o silêncio desta sala seja múltiplo, já que ela se encontra em uma casa que não é uma habitação privada, mas serve de convento a um círculo sagrado dos esseus. A ordem dos esseus tem ai sua sede em local sagrado e antiqüíssimo, no Monte Sion, onde há milênios, antes da história da Velha Liga ler o seu centro neste lugar, já existia um antiqüíssimo santuário  da humanidade. Em local muito antigo e sagrado encontra-se o cenáculo que os irmãos esseus deixam à disposição de Jesus e seus discípulos para a véspera do Passah.

Diretamente em frente também em uma localização tradicional e antiqüíssima, encontra-se a casa de Kaifas, casa-matriz da ordem dos saduceus. Lá também se reúne um grupo para comemorar o Passah. São os inimigos cheios de ódio, quase incapazes de pensar na festa vindoura, pois estão sendo movidos por um plano de ódio e inimizade. Forçosamente, a luta está suspensa.

É preciso aguardar até depois da hora sagrada. E os num inimigos, eles próprios ordenam: "Procurem agarrá-lo, mas não antes da festa. Na sala onde estão reunidos Jesus e seus discípulos, cumpre-se o 23° salmo: “Preparas diante de mim uma mesa, à vista de meus inimigos”. Desceu o silêncio, é verdade, mas a fatalidade sombria da noite de Passah se incorpora nos espectros noturnos daqueles outros comensais, na casa vizinha.

O que há sobre a mesa ao redor da qual se instalaram Jesus e os discípulos? Este grupo também obedece à velha lei e cumpre a tradição. Foi preparado o cordeiro pascal. Jesus se prepara com os discípulos a comê-lo, recordando devotamente o sacrifício do cordeiro que, na época de Moisés, fora o sinal pelo qual o povo judeu foi libertado da escravidão.

Mas o cordeiro pascal na mesa deste Cenáculo adquire um sentido modificado. A mesa está sentado aquele do qual João Batista pôde dizer: "Eis o cordeiro de Deus, que assume (carrega) os pecados do mundo". Em nenhum outro lugar àquela hora, nem antes, nem depois, o cordeiro pascal esteve tão próximo daquele que simboliza. Através de milênios a ceia do cordeiro pascal foi um costume profético. Agora, eis que a profecia se cumpre, logo o apóstolo Paulo poderá dizer: "Nós também temos um cordeiro pascal. É o Cristo que se sacrifica por nós". (1º Cor. 5,7)! No Cenáculo encontram-se a profecia e seu cumprimento. A sala está cheia de pesado pressentimento. Pesam no ar a separação e a tragédia. O sacrifício do Cristo já lança antecipadamente sua sombra. O consciente dos discípulos passa por uma dura prova.

Através do cordeiro pascal sobre a mesa, esta cena inclui a reminiscência dos antigos sacrifícios sangrentos; atua a magia do sangue, que é o sentido de todos os sacrifícios sangrentos da época pré-cristã. O sentido dos antigos sacrifícios residia no seguinte fato: o fluxo do sangue fresco de animais sacrificais puros possuía a força de induzir as almas humanas - ainda não tão ligadas o corpo - em alienação extática, de modo que forças divinas do além podiam refletir-se nas condições humanas.

No Cenáculo do Monte Sion o velho sacrifício perde definitivamente o seu sentido. Agora, o mais alto ser divino veio, ele próprio, do além para a terra. O cordeiro perde seu significado próprio e passa a ser apenas a imagem, o reflexo do mistério do Cristo presente. O antigo sacrifício sangrento torna-se definitivamente supérfluo. A força que antigamente se tentava - cada vez com menor sucesso - atrair do além pelo sacrifício do sangue, está presente agora para se ligar inseparavelmente com o mundo terreno. O cordeiro pascal não pode mais ser um meio mágico, pois na própria existência terrena forma-se um núcleo de germinação e brotação de forças celestes. O cordeiro se transforma em puro símbolo do amor divino que se sacrifica.
Na mesa da Santa Ceia não vemos, entretanto, apenas o cordeiro pascal. Há também, incidentalmente, pão e vinho. E, após cumprirem a velha tradição da ceia do Passah, os discípulos se admiram ao verem o Cristo tomar em mãos os símbolos, presentes por acaso, do comer e beber e adicionar à ceia do Velho Testamento uma nova refeição. Algo de totalmente novo, inesperado, acontece quando ele oferece aos discípulos o pão e o vinho, dizendo: “Tomai, pois este é meu corpo e este é meu sangue". Em realidade, estes símbolos não estão na mesa por acaso. Da penumbra de mistérios ocultos surge à luz aquilo que sempre já existira na humanidade. No exterior dos velhos templos havia sacrifícios sangrentos oferecidos em presença do povo; do mesmo modo, ao abrigo esotérico de certos santuários que cultivavam os mistérios solares, sempre houve pão e vinho como os verdadeiros símbolos do deus do sol. No mesmo local onde o grupo está agora reunido para a ceia, dois mil anos antes, nas grutas rochosas onde estavam agora sepultados os Reis e Davi, existira o santuário de Melquisedeque, o supremo iniciado solar. Melquisedeque levara pão e vinho para oferecê-los, no Vale do Kidron, a Abraão, que regressava vitorioso.

Mas pão e vinho jamais puderam representar, mesmo rios templos dos mistérios pré-históricos, a função que adquirem neste momento. Sempre foram apenas símbolos do deus do sol que os veneradores tinham que procurar em outras esferas. Agora, no entanto, são mais do que símbolos. No Cristo está presente o próprio alto espírito solar, e ele pode dizer, ao oferecer o pão: “Este é meu corpo” e, ao oferecer o cálice: “Este é meu sangue". Sua alma, ao oferecer-se, penetra no pão e no vinho. Pão e vinho se iluminam na semi-escuridão. São envolvidos em um brilho dourado, em uma luminosa aura solar, ao se transformarem no corpo e no sangue do próprio espírito do sol. Todos os mistérios solares da pré-história foram apenas profecias. Neste momento estão sendo cumpridas. Na passagem dos sacrifícios sangrentos da pré-história para o sacrifício sem sangue do pão e do vinho ocorre, para toda a humanidade, a decisiva interiorização da idéia de sacrifício: todos os sacrifícios antigos eram materiais, agora esta fundado o sacrifício da alma. Inicia-se na prática do sacrifício um fluxo de verdadeira interiorização. São despedidos os sacrifícios lunares da pré-história e substituídos pelo sacrifício solar. O Cristianismo, verdadeira religião solar, encontra nesta noite sua aurora.

O Cristo não apenas liga a velha ceia à nova; antes e depois da ceia executa atos importantes, de modo que surge um todo de quatro partes. Pela primeira vez reluz a lei que, doravante, será sempre renovada e revelada nas quatro partes do sacramento cristão central. Antes de comer o cordeiro pascal, Jesus pratica o ato do amor simples, inesgotável e indescritível do lava-pés. Obedecendo e elevando um rito comum na ordem dos esseus, ele se abaixa e lava os pés de cada discípulo, inclusive de Judas. Surge uma imagem comovente daquilo que de fato está ocorrendo: o Cristo se dá aos seus, totalmente, com amor. A morte na cruz selará essa dedicação.

Tal como introduziu as duas ceias com o lava-pés, assim também as encerra. Acompanhando o costume praticado nesta hora em todas as casas, segundo o qual, terminada a refeição do Passah, os pais de família liam ou recitavam a Hagada, a tradicional história do povo sob forma de lendas, o Cristo também faz seguir-se à ceia um ensinamento. Ternos no evangelho de João a mais maravilhosa reprodução de suas palavras de despedida, que culminam com a oração.

São quatro as etapas atravessadas: lava-pés, cordeiro pascal, pão e vinho e discursos de despedida. Ao lavar Jesus os pés dos discípulos, estes parecem já experimentar a mais íntima comunhão das suas almas com a alma de Cristo. Mas, em realidade, o lava-pés nada mais é do que o último resumo simbólico de todos os ensinamentos que Cristo deu a seus discípulos. Por isso, ele lhes diz: "Dou-vos uma nova lei: amai-vos uns aos outros." O lava-pés é, de certo modo, a ultima parábola aos discípulos parábola que já não foi falada, mas praticada. O amor é a meta final da doutrina que o Cristo lega aos discípulos.

Após a leitura do Evangelho, feita em total devoção de alma, comer o cordeiro pascal é a etapa do ofertório. Surge a imagem do sacrifício: Cristo - o cordeiro sacrifical que morrerá na cruz no dia seguinte pela humanidade.

Segue-se a terceira etapa: Cristo oferece aos discípulos pão e vinho. Pela primeira vez realiza-se então o mistério da transubstanciação, terceira parte do sacramento, após a leitura do Evangelho e o ofertório. O celeste transpenetra o terreno, o espiritual reluz na matéria. Como uma estrela fulgurante revela-se o sol da Transubstanciação que, mais tarde, atingirá seu pleno brilho.

Na quarta parte, nos discursos de despedida, parece que o Cristo dá aos discípulos apenas ensinamentos e instruções para seus caminhos. Em realidade, no entanto, ele se transmite a si mesmo da mais íntima maneira possível. Estas palavras, que captam o eco espiritual da Santa Ceia são, mais ainda do que pão e vinho, corpo e sangue do Cristo. Nelas, a alma do Cristo se oferece a mais intima comunhão e reunião com as almas dos discípulos. Mas os discípulos só ouvem estas palavras como em sonho. Só há um deles, João, próximo ao coração de Jesus, capaz de ouvir o que fala o coração de Cristo e, por isso mesmo, capaz de preservar para a humanidade, em seu evangelho, uma replica desse momento.

O grande sacramento, de quatro partes, dessa hora, está repleto do amor cósmico que se difunde, que jorra do coração do Cristo. A plenitude da palavra do Cristo forma o final, nos discursos de despedida, e este fato abre uma porta luminosa para o futuro da humanidade. O Cristo do qual parte o fluxo de amor cósmico fala, ao mesmo tempo, como alto espírito da Sabedoria. É como se Júpiter, deus da sabedoria, reaparecesse entre os homens sob uma forma nova.

O santo grupo de comensais é dissolvido de modo dramático. O costume do Passah e a rigorosa lei proibiam que se saísse à rua nesta noite. Quem o fizesse encontraria o Anjo Exterminador. As ruas ficavam vazias. Não obstante, em determinado momento, vemos alguém sair; nada o reteve após ter recebido sua parte da refeição da mão de Jesus. O evangelho de João adiciona: "era noite". Em seu interior também reinava a noite; Satanás penetrou nele nesse instante. Judas vai à casa em frente, onde o círculo de Kaifás também cumpre o rito da ceia pascal, mas estão ansiosamente dispostos para as negociações que Judas pretende fazer com eles.

Judas falhou diante do mistério do sacramento. Já na véspera fora tomado pelo demônio da inquietação quando na casa em Bethânia espalhou-se o ambiente sacramental. No cenáculo deparou-se pela segunda vez com a substância do sacramento. Não tem em si a quietude que lhe permitiria aceitar a paz como bênção do sacramento. E, portanto, aquilo que poderia oferecer-lhe paz o precipita no mais alto grau da ausência da paz, na perda arimãnica do Eu, na alienação possessa.

Mais uma vez é rompida a proibição do Passah. Assustando os discípulos, Jesus se ergue e lhes faz sinal para segui-lo. Saem para a noite escura. A luz clara da lua se apagara quase totalmente. Houvera um eclipse. A lua no céu parecia uma esfera cor de sangue. As rajadas frias que acompanham a despedida do inverno começam a soprar quando Jesus chega com seus discípulos a Getsemane.

A dupla saída* é imagem de processos interiores. A saída de Judas revela que seu gênio bom, seu verdadeiro Eu, o abandonou; Judas realmente encontra, lá fora, o Anjo da Morte. Espíritos arimânicos o transformam em seu instrumento. A saída do Cristo é imagem do livre derramamento da alma que, desde a origem, foi portadora, no cosmos, da idéia de sacrifício (ofertório. Quando Judas sai, a escritura diz “era noite”. É noite também na alma de Judas. Quando sai o Cristo, podemos dizer “era dia”. Um fulgor dourado se mistura a noite tenebrosa. Um mistério solar envolve o Cristo quando ele desce com os discípulos pelo mesmo caminho pelo qual Melquisedeque dois mil anos antes levara pão e vinho. Um sol brilha em plena noite. Por isso pode acontecer mais tarde que o Cristo subjuga o Anjo Exterminador em Getsemane.

A luz solar que os homens viram brilhar no ser do Cristo no domingo de Ramos já penetrou em camadas muito mais profundas. Ninguém o percebe. Não obstante, o mundo recebe uma nova luz nesta noite santa, que mais é uma véspera da Páscoa do que véspera de sexta-feira da Paixão. No dia da Ascensão, outra quinta-feira, seis semanas mais tarde, o germe de luz cujo crescimento começa no cenáculo já terá adquirido ou onipresença terrena e força cósmica.

* Ver Apêndice


CAPÍTULO 6

SEXTA-FEIRA SANTA

À medida que a Semana do Silêncio realmente desemboca em silêncio, a atitude de Jesus parece modificar-se. A volição combativa e cintilante não aparece mais como antes. Quando, entre a meia-noite e a aurora, os encarregados vêm prender aquele que Judas beijaria, ele não se defende. Pelo contrário, impede Pedro de defendê-lo. Vemo-lo assim, agarrado por mãos brutas, arrastado de um lado a outro da cidade, aparentemente incapaz de escapar à crueldade dos que o flagelam, lhe colocam espinhos na testa, cospem e batem no seu rosto. O espectador é tomado da mais profunda emoção e tristeza quando, finalmente, os carrascos dão ao exausto a pesada cruz para carregar e depois o fixam à cruz com pregos. Onde ficou a força combativa que ainda nos primeiros dias desta semana o envolvia como em relâmpagos e centelhas? Abandonou ele a luta diante da cegueira e maldade dos homens?

Apenas em aparência exterior a atitude combativa e heróica foi substituída por uma aceitação passiva do destino. Os homens não estão maltratando e crucificando apenas um homem. Nas cenas da Paixão esconde-se o destino de um Deus: a luta que nos dias precedentes era travada por meios humanos continua agora em esfera oculta. Ao abrigo de olhares externos, esta luta assume agora dimensões muito mais poderosas. O Cristo não luta com carne e sangue, mas com os poderes invisíveis dos adversários, de cuja tirania ele quer libertar a humanidade. Luta contra as potências luciféricas, contra os seres ardentes da luz enganadora que tentam alienar o homem da terra. Mas luta também contra os poderes arimânicos que contraem, enrijecem o homem e querem prendê-lo à matéria morta. Se adquirirmos a faculdade da visão capaz de ver além do primeiro plano das cenas da Paixão, então veremos como o Cristo luta vitoriosamente, primeiro contra as potências luciféricas, depois contra as potências arimânicas. No domingo de Ramos fora uma atividade da espiritualidade luciférica que desencadeara nos homens os gritos de "hosana", uma pseudo-espiritualidade irresponsável, inútil. Vimos como o Cristo recusou e despediu na segunda-feira esta antiga espiritualidade que se tornara luciférica. Na terça-feira vemo-lo entrar em outra arena de luta: na camada do intelecto esperto e astuto, sobre o qual ele lança suas palavras com grande força espiritual. Os questionadores que pretendem preparar-lhe uma cilada representam a fria astúcia e esperteza arimânica. Vemos como ele começa a enfrentar esses outros adversários mais obscuros.

Mas o poder arimânico age, mais do que na esfera humana, na esfera da matéria. Age em campo oculto. E se, aparentemente, o Cristo entrega as armas no decorrer do drama da Paixão, em realidade ele apenas persegue o poder arimânico em suas camadas ocultas para aí subjugá-lo.

O poder que Ariman possui sobre os homens se torna mais evidente e triunfante quando ele se aproxima do homem sob a forma da morte. No decorrer da evolução da humanidade, até o final da Antiguidade, a morte, inicialmente, um amigo paternal do homem, cada vez mais assumira os traços do Ariman. A fatalidade que paira sobre o homem, o fato de ser ele mortal, foi aproveitado pelo sinistro espírito, que dela fez sua mais contundente arma em sua luta contra a humanidade. O poder que a morte detém sobre nós não consiste unicamente no fato de termos que morrer, porém revela-se mais ainda depois da morte. Então, deve revelar-se a nós, após entregarmos nosso corpo terreno, ainda podemos continuar ligados àquilo que acontece na terra com aqueles aos quais nos relacionamos, dos quais fazemos parte. O poder total da morte reside nesta faculdade de nos arrancar ao terreno e nos lançar em uma vida no além sem relação alguma ou ponte que a ligue à vida na terra. O poder mortal de Ariman burla o homem. Durante a vida terrena o liga ao mundo da matéria, promete-lhe todas as realizações terrenas para não mais cumprir a promessas após a morte. Quanto mais terreno ou materialista o homem é durante a vida, tanto mais inexorável será em seu exílio no além. Somente aqueles que já se firmaram no espiritual durante a vida poderão continuar agindo sobre a vida na terra após a morte e continuar auxiliando aqueles que ainda permanecem na terra. Nós só possuímos, após a morte, tanto poder espiritual sobre a matéria quanto adquirimos na terra durante a vida.

Tocamos assim a esfera na qual o Cristo, ao prosseguir-se o drama da Paixão, continua a luta. Ele avança tanto mais potente nesta esfera quanto mais a aparência exterior sugere que ele se entrega passivamente aos que o capturaram. Ele não se defende contra os homens, não quer evitar exteriormente o sofrimento e a morte. Não se contenta apenas em defender-se, mas conquista uma vitória após outra sobre o poder arimânico-satânico que a morte quer ter sobre a essência interior do ser humano.

Quando o Cristo, no cenáculo, na quinta-feira santa, oferece aos discípulos a Santa Ceia, aparentemente não há luta. No entanto, quão maravilhosa vitória sobre o espírito da gravidade e da matéria inerte! O Cristo acompanha o pão e o vinho que sucumbiram às forças materiais terrenas e os torna luminosos pela força solar do seu coração. Arranca a criatura terrena às forças tenebrosas e a transforma em corpo e sangue da sua essência da luz.

Adivinhamos: se agora, ainda encarnado, ele é capaz de animar (conferir alma) aos elementos da terra, a ponto de torná-los luminosos, ele poderá fazer o mesmo, e mais, após morrer na cruz. Em Getsemane, a luta contra o poder mortal entra em uma fase decisiva. Aqui, no tranqüilo Horto das Oliveiras, onde tantas vezes se detivera com seus discípulos para ensinamentos intimos*, ele tem que enfrentar - na mais extrema solidão - o mais perigoso ataque do adversário. O milagre da comunidade que ele acabara de oferecer no cenáculo para o bem do futuro da humanidade não vai ajudá-lo em nada. A consciência dos discípulos não está à altura do acontecimento. Judas desaparece nas trevas da traição, mas os outros também o abandonam, caindo nas trevas do sono de Getsemane, a partir do qual Pedro o negará.

O Cristo não tem que lutar contra uma fraqueza interna ou contra o medo da morte. Nada mais trágico do que interpretarmos a Paixão do Cristo como se Jesus, em Getsemane, tivesse orado para ser poupado da morte. Não é o medo da morte que o ataca, é a própria morte. A força da morte, já temerosa de perdê-lo do seu controle, se aproxima e ergue a mão contra ele. O Anjo Exterminador quer agarrá-lo. O mistério da lula no Getsemane reside no fato de a morte querer enganá-lo. Ela o quer antes da hora, antes que ele tenha completado sua missão, antes que seu espírito tenha impregnado totalmente a terra. Quer arrancá-lo para se apoderar ao menos de uma parte do seu ser.

*Do primeiro ao terceiro evangelho notamos uma progressiva revelação do mistério de Getsemane. Os dois primeiros evangelhos dizem apenas: “Jesus chegou com os discípulos a um horto chamado Getsemane". Temos, inicialmente, a impressão de que se trata de um sítio qualquer, estranho. Em Lucas o tema já toma outra direção: “Subiu, conforme seu costume, ao Monte das Oliveiras, e os discípulos o seguiram". É um lugar onde Jesus se detivera muitas vezes. O evangelho de João, enfim, traz a plena revelação: "Saiu, então, com os discípulos atravessando o rio Kedron. Havia ali um horto. Nele, Jesus entrou com os discípulos, mas Judas, que o traiu, também conhecia o lugar, porque Jesus muitas vezes ali se reunia com eles”. Getsemane é, portanto, um lugar de instrução esotérica aos discípulos. O Horto das Oliveiras se estendia até o alto do Monte das Oliveiras. Foi também o cenário do Apocalipse do Monte das Oliveiras na noite de terça-feira.

Durante três anos ardera em seu corpo e em sua alma o fogo solar do Eu divino. Os invólucros, sob este fogo interno, já estão perto de se incinerarem. O que resta ainda a assumir e a completar exigirá, também do lado físico, tanta força que surge o perigo da morte precoce. O poder arimânico, na tocaia, quer se aproveitar deste momento. Lucas, o médico, descreve exatamente o que ocorre; o errôneo sentido antropomórfico dado à cena é devido unicamente às traduções correntes. Onde a Bíblia de Lutero diz: “Aconteceu então que ele lutou com a morte e orou com maior intimidade”, o texto literalmente é: “ao entrar em agonia". Portanto, em sentido medico-técnico, já começou a agonia, a luta final. Lucas diz ainda: “Dele derramavam-se gotas de suor com sangue", definindo assim o exato sintoma da agonia.

O Cristo permanece vitorioso. Repele a morte. Ainda não chegou a hora. Com a mais potente força de oração jamais desenvolvida na terra, ele luta por ainda ficar no corpo. São ainda um eco desta luta as palavras que ele dirá na cruz: “Tenho sede”, aparentemente revelando uma fraqueza. Até o momento imediatamente anterior à expiração final, ele permanece fiel ao terreno. É neste fato que residirá sua vitória sobre a morte. Ele penetra ainda mais profundamente no mundo material terreno que porta em si pela corporeidade física. Ainda há um resto a cumprir. Não quer entregá-lo ao príncipe deste mundo, que já acredita ser a esfera material sua posse inalienável. Finalmente, é o próprio Judas que o aborda para lhe dar o beijo da traição, ajudando-o a repelir, com o perigo da morte precoce, o poder satânico.

Os outros discípulos que se mantiveram fiéis ao Cristo, em realidade o abandonam. O traidor vem ajudá-lo, socorrê-lo, sem saber o que está fazendo.
O cenário do drama volta novamente ao contexto humano. A manhã da sexta-feira traz um encontro do Cristo com toda a humanidade, representada pelas três figuras de Kaifás, Pilatos e Herodes. Em seguida, a via leva ao Monte do Gólgota: vemos os mercenários baterem os pregos através de mãos e pés do Cristo e, aparentemente, ele tudo aceita, aparentemente se entregou à extrema passividade. Em realidade, sua essência interior adquiriu através da mais amarga dor, o supremo poder do espírito sobre a matéria, de modo que o mundo da morte em nada mais pode afetá-lo. Os poderes arimânicos, as forças da morte sentem este fato. Entram em cena com suas últimas reservas, rugindo de raiva, bufando de ira porque falhou seu poder. Quando o sol escurece durante horas ao meio-dia da sexta-feira, parece que o demônio solar já foi mobiliado contra o deus do sol. E quando treme a terra, todos os demônios da terra parecem estar atacando para conseguir a vitória da força satânica da morte. O Anticristo move os elementos da terra e até mesmo as forças do céu. Mas o Cristo passa, sem se alterar, ao lado da força da morte.

A morte nada pode roubar à soberania de seu espírito, ao seu poder total sobre toda a essência terrestre. Os poderes cósmicos que levantam na hora do Gólgota estão em acordo com sua vontade. Ele disse aos que o prenderam em Getsemane: “Chegou agora a vossa hora. Agora as trevas têm a palavra”. (Lucas, 22, 53). Ao escurecer-se o sol, nada mais acontece além daquilo para o que o próprio Cristo dera o sinal.
Em meio à escuridão do Gólgota, revelou-se um mistério que podemos agora, cautelosamente, insinuar. O corpo na cruz começou a emitir luz. Se em muitas regiões, nos campos e nos caminhos, encontramos crucifixos negros com um Cristo dourado, podemos ver nesta tradição popular e ingênua um importante mistério da sexta-feira santa. Um secreto brilho solar quebrou a terrível escuridão do meio-dia. Revelou-se o sol do Cristo ao obscurecer-se o sol exterior. Um raio pascal já brilhou em plena escuridão da sexta-feira santa.

A última das sete palavras pronunciadas na cruz: “Está consumado” não significa que acabou o sofrimento, significa que agora a vitória total sobre o poder da morte foi conquistada. Enquanto normalmente a morte, após burlar o homem durante toda a vida com a matéria terrena, o lança ao além e o condena ao exílio, o Cristo, ao morrer, dirige-se diretamente à terra. O sangue flui de suas feridas e a alma o acompanha. Normalmente, quando um homem perde seu sangue, sangue e alma seguem caminhos opostos. Aqui a alma acompanha o sangue. E, em seguida, o corpo é sepultado. Normalmente, quando o corpo é sepultado, corpo e alma seguem caminhos diversos. Aqui a alma segue o mesmo caminho em direção à terra. É este o grande sacrifício cósmico de amor que o Cristo pode dedicar para toda a existência terrestre, porque a morte é incapaz de impedi-lo. A terra recebe corpo e sangue do Cristo. Recebe a grande comunhão, porque a morte não tem poder sobre aquele que morre na cruz. E assim incorporou-se a toda existência terrena um fermento, o remédio da trans-espiritualização de toda existência terrena material.

Durante três dias ainda persiste o efeito (Bann) da morte. De modo semelhante ao que acontece após a morte de qualquer homem, durante três dias ocorre uma certa parada sagrada do destino. Três dias após a morte física, a morte ainda uma vez mais adquire um poder implacável sobre o ser humano. Após ter afastado dele o corpo terreno, a morte separa agora também o corpo vital, o corpo etéreo, e o espalha pelo cosmo. O reluzir do corpo na cruz descortina a visão pascal: o poder da morte não será capaz, no terceiro dia, de dissolver o corpo etéreo do Cristo. Pelo poder que o Cristo detém sobre seu próprio ser, este manto etéreo não se afastará da terra, substanciar-se-á, de modo que o Cristo poderá ainda mais ligar-se a tudo o que é da terra. Em sua corporeidade espiritual, o Cristo permanece perto dos homens, como ele mesmo profetizou: “Eis que ficarei convosco todos os dias até o fim dos tempos terrestres”.

Através de uma força o Cristo obteve a vitória sobre a morte: a força do amor cósmico que nele se fez homem. Pilatos pôde dizer daquele que viu marcado pelos flagelos, coroado com espinhos e ironizado com o manto de púrpura: “Este é o Homem!”. Quanto mais nós podemos dizer: o que está na cruz e abre seus braços a fim de praticar na morte o grande ato de amor que tudo transforma é a verdadeira e mais sagrada imagem da essência do homem. Foi o que Christian Morgenstern cunhou em palavras poéticas:


Eu vi o HOMEM em sua forma mais profunda
Conheço o mundo até em seu fundamento

Sei que amor, amor é seu mais profundo sentido
E que existo para amar cada vez mais.

Abro os braços como ELE fez
Quero, como ELE, abraçar o mundo inteiro.


CAPÍTULO 7

SÁBADO DE ALELUIA


Estamos diante do sepulcro de José de Arimatéia, no qual foi deitado o corpo do Crucificado. A atmosfera está pesada como chumbo, saturnina. Realiza-se o sentido do dia de Saturno. Sempre já fora a essência do dia de Saturno, que os fiéis da Velha Liga, obedecendo à rígida lei, se entregavam ao silêncio dos túmulos: hoje é o sábado dos sábados. Mas nos ocupa uma pergunta ansiosa. E como se um lutador tivesse penetrado em uma gruta escura a fim de subjugar no interior um monstro, um dragão. Voltará ele vitorioso?

No dia anterior, nas trevas do meio-dia, quando o Cristo inclinou a cabeça e morreu, rasgou-se a cortina no templo. Isto foi mais do que um efeito natural do terremoto. Abre-se a visão do aspecto interior do mundo. Apenas a noite ainda nos impede de ver. Mas, da escuridão saturnina desprendem-se imagens. Tênues luzes iluminam os arredores do sepulcro e clareiam o terreno em parábolas do supra-terreno.

Reúnem-se imagens que já foram vistas nas últimas estações da via do mistério. Mesa e Cruz resumem como arqui-imagens aquilo que aconteceu nos dois últimos dias. Adiciona-se como terceira arqui-imagem a do sepulcro. É como se a atmosfera templária do Santíssimo, ante o qual rasgou a cortina, se ampliasse, se estendesse ao nosso  mundo.

Desde os primeiros tempos, os sepulcros foram, ao mesmo tempo, os altares dos homens. Todo culto divino originou-se no culto aos mortos. Os homens da terra iam aos túmulos quando queriam comunicar-se com os deuses. As almas dos mortos eram mediadoras entre os homens e os deuses. Como as almas dos mortos podiam ser encontradas perto dos túmulos, ali também encontravam-se os outros habitantes do mundo espiritual. Assim era em passado muito remoto, quando a morte ainda era irmã do sono e ainda não detinha o poder de aterrorizar de tal modo os homens como atualmente. Os homens, durante sua vida terrena, ainda não estavam tão desesperadamente presos à matéria do corpo terreno e, por isso, também não se separavam tão definitivamente do plano terreno após a morte. Havia ainda entre o mundo terreno e o espiritual um intercâmbio semelhante à inspiração e expiração. As almas dos mortos podiam reunir-se à beira dos túmulos com os que deixaram na terra. A imortalidade, a presença das almas que viveram na terra, ainda era perfeitamente sentida e não era posta em dúvida. Era o ar que os homens respiravam e do qual se asseguravam especialmente ao visitarem os túmulos e ao construírem sobre estes os seus templos.

No decorrer dos séculos, os homens se encarnaram cada vez mais profundamente. Quanto mais se ligavam a matéria terrena, tanto mais perdiam, para a vida post-mortem, a possibilidade de permanecerem ligados à terra. Durante a vida na terra ficavam presos à matéria, após a morte ficavam presos a uma esfera de sombras, de onde lhes era difícil aproximar-se dos homens na terra. A Fenda entre a terra e o além se alargava cada vez mais, era cada vez mais intransponível. A esfera da vida após a morte transformou-se em prisão, como dizem as epístolas de Pedro no Novo Testamento. A humanidade corria o risco de perder a verdadeira imortalidade, a consciência que sobrevive à morte. Um encanto entorpecente se apoderou do reino dos mortos.

Quando os egípcios mumificavam seus mortos e oravam nas proximidades dos corpos embalsamados, apenas tentavam forçar a conservação do estado antigo, tentavam prender as almas aos restos cadavéricos, apesar da intransponibilidade cada vez maior daquele abismo. Mas não era possível evitar a fatalidade. Cada vez mais se instalou, nos séculos pré-cristãos, o terror diante do mundo dos mortos. O estremecer diante da esfera dos mortos preenchia o mundo grego. No Velho Testamento desaparece totalmente a idéia da imortalidade. Formou-se uma corrente religiosa isenta da certeza da imortalidade. A crença de que a vida se prolonga somente nos descendentes substitui a idéia da imortalidade.

Não obstante, nos séculos pré-cristãos as almas ainda não estavam tão presas ao corpo como atualmente. Em conseqüência, os homens que viviam na terra sentiam claramente a trágica fatalidade da morte. Um peso oprimia a humanidade. Ainda se visitavam os túmulos, mas as almas dos mortos não vinham mais e os deuses permaneciam ausentes dos altares. O sentimento asfixiante da época pré-cristã era devido muito menos à miséria material do que à miséria interior. A terra transformou-se em deserto que há muito tempo não recebia chuva. A morte, outrora irmã do sono, transformou-se em terror da humanidade. É este o fundo emocional da esperança cada vez mais ardente pela vinda do Messias, esperança que atravessa todos os povos da era pré-cristã.

Estamos agora entre a sexta-feira santa e a Páscoa. O corpo foi tirado da cruz e depositado no sepulcro. A humanidade não o percebeu, mas, misteriosamente, arqui-imagens, pensamentos divinos se entretecem aos acontecimentos. A Providência fez com que cruz e sepulcro se situassem em um local que há milênios já fora vivenciado como um ponto central da terra. Entre Gólgota, a colina rochosa que se prolonga na massa rochosa lunar da montanha do templo, e o sepulcro, cujos arredores formam o início da paisagem cultivada do Monte Sion, havia outrora uma fenda primária na superfície terrestre. (Ver “Koenige und Propheten”, pág. 58 e ss. e “Caesaren und Apostel” pag. 193 e ss). A antiga humanidade via nesse terrível abismo o túmulo de Adão. Foi aí que, pela primeira vez, a morte desceu sobre a humanidade. E, deste modo, desde os tempos mais remotos, esta fenda, que corta em duas a face da cidade de Jerusalém, esteve ligada à idéia de ser esta a porta do Inferno. Neste local foi erguida ontem a cruz e está hoje o sepulcro.

Ao tentarmos assim penetrar no aspecto interior dos acontecimentos, parece-nos que mais uma vez é rasgada uma cortina, diante de outra esfera: o reino noturno dos mortos abre-se diante de nós, a esfera mais sagrada (o Santíssimo) na qual vivem as almas dos mortos que, no entanto, estão magicamente presas pelas forças da morte. Encontramos, então, uma luz inesperada na escuridão saturnina da esfera dos mortos. Agora existe ali alguém que não está dominado pela força mágica da morte e é livre de todo torpor. Ele atravessa a morte carregando a plena luz solar do seu gênio. E, desta maneira, enquanto na terra reina o escuro sábado sepulcral, nasce o sol no reino dos mortos. É este o sentido da descida do Cristo ao inferno. No reino dos mortos nasce um reluzir de esperança. Afrouxa-se a força mágica da morte, porque a visão se abre sobre uma futura vitória da alma humana sobre o espectro terrível do reino dos mortos. Quando na terra ainda era sábado, no reino dos mortos já era Páscoa. Antes que os homens da terra percebessem algo da Páscoa, já a perceberam os mortos.

Como haverá de prosseguir o drama? Ainda não está decidida a questão se haverá Páscoa também no mundo da corporeidade terrena. Ocorrerá também no campo material a vitória sobre a morte? Vitória que já brilha no reino das almas?

A terra moribunda, arriscada a perder totalmente a conexão com o céu, recebeu um remédio. Recebeu corpo e sangue do Cristo. Foram estas as primeiras partes da matéria terrestre totalmente impregnadas pelo espírito. São elas o germe de uma nova matéria transiluminada pelo espírito. O ser espiritual-anímico do Cristo acompanhou o corpo depositado no sepulcro de José de Arimatéia como acompanhara o sangue cujas gotas molharam o Monte do Gólgota. Pela primeira vez ficou sem efeito o exílio para o além, pela morte.

Encontramo-nos em um ponto crucial da Providência. Todo o universo participa diretamente daquilo que acontece na cruz e no sepulcro. A comunhão através da qual a própria terra absorve o remédio cósmico cresce incomensuravelmente. Já na sexta-feira santa, no momento da morte do Cristo, iniciam-se os terremotos, o último dos quais ainda faz estremecer a manhã da Páscoa. Durante o sábado não cessaram totalmente, embora as forças na natureza talvez se adaptassem ao silêncio sepulcral adequado ao dia. Embora possa ofender o cômodo raciocínio terreno, Faz parte dos pontos culminantes cósmicos do drama do mistério do Gólgota aquilo que Rudolf Steiner transmitiu, como resultado da pesquisa espiritual, mas que pode ser comprovado também a partir do conhecimento dos segredos que repousam no solo de Jerusalém: reabriu a fenda original do Gólgota, que fora aterrada por Salomão. E, assim, a terra inteira se transformou em sepulcro do Cristo. A terra aceitou a hóstia que lhe foi oferecida, até mesmo fisicamente a aceitou em toda a profundeza. Ao pronunciarmos, com as palavras da nossa religião, os acontecimentos do sábado de Aleluia: “Ele foi enterrado no sepulcro da terra”, tocamos de leve o aspecto cósmico do mistério do Gólgota. Novalis sabia disto e expressou poeticamente que, quem ofereceu à terra o medicamente cósmico, não foi outro senão o próprio Cristo. O corpo do Cristo foi aparentemente sepultado por mãos humanas. Em verdade, ele se entregou livremente após a morte para a cura de toda a terra:

“...Como Ele, movido somente pelo amor
Se nos entregou totalmente.
E se deitou no seio da terra
Como pedra fundamental de uma Cidade de Deus”.

A comunhão cósmica do nosso planeta terreno ocorre na sexta-feira santa e no sábado da Aleluia, antes mesmo da vitória pascal completa. Eis porque o corpo fisicamente real e o sangue fisicamente real do homem Jesus de Nazaré foi o medicamento que a terra recebeu. O fluxo sacramental que daí se derrama pela humanidade parte da Páscoa. Foi o erro do culto de relíquia medieval, nada mais do que uma relíquia de hábitos e crenças pré-cristãs, que induziu os homens a pensarem que sua vida cultural-sacramental dependia de restos físicos do corpo de Cristo. Os portadores do culto da Cristandade, tanto o catolicismo ocidental quanto o oriental, mantiveram com razão o velho princípio de construir os altares sempre em forma de túmulo. Mas foi um erro ater-se à prescrição de que no altar deveria haver sempre uma relíquia, fosse da própria vida terrena do Cristo, fosse de um santo a ele ligado. Esta ordem foi um retorno a tempos pré-cristãos em que só se podia cultivar a relação como mundo espiritual à beira dos túmulos, onde repousavam os restos terrenos dos mortos. A refutação de todo culto de relíquias é o Sepulcro Vazio. O sepulcro de José de Arimatéia não continha resto algum do corpo de Cristo quando na manhã da Páscoa Pedro e João desceram na fenda escura.

O sepulcro vazio significa: Não olheis para o homem Jesus! Não estais diante do sepulcro de um grande e santo homem. Olhai para o Cristo! Ele é uma entidade cósmico-divina. Seu túmulo não é o sepulcro de José de Arimatéia, mas toda a terra. As verdadeiras relíquias não são quaisquer restos dos acontecimentos físicos, pois estes só poderiam captar o estado pré-pascal dos fatos do Gólgota. O significado da vitória pascal é que, doravante, o corpo espiritual do Cristo, tecido de luz, poderá reluzir em tudo o que é terreno. Pão e vinho, sendo o verdadeiro corpo e o verdadeiro sangue do Cristo, são o medicamento da nova vida conquistada através da vitória pascal. Neles, a homeopatia espiritual atravessa o mundo, tendo como portadores os homens ligados ao Cristo. A sabedoria do Cristianismo original em torno deste mistério, expresso, por exemplo, por Inácio de Antióquia, pode ser reconquistada em nossa época através do pensamento claro treinado pelas Ciências Naturais: pão e vinho são os medicamentos da imortalidade.

Os altares do sacramento renovado também têm a forma de um túmulo. E, quando as paróquias se reúnem em torno dos altares, sempre está presente o princípio do sábado da Aleluia. Somos os que esperam diante do santo túmulo. Sabemos que nosso altar não precisa abrigar relíquias. O medicamento está presente quando o Cristo está presente, no pão e no vinho. As arqui-imagens da mesa e do túmulo se interpenetram. E à mesa do Senhor podem novamente estar presentes os nossos mortos. Aqueles que atravessam a morte após terem se ligado intimamente em vida ao novo sacramento indubitavelmente saberão achar este Santo Sepulcro, mais facilmente até do que achar seus próprios túmulos. As almas não mantêm mais relação intensiva com os corpos de que se despojaram. Mas, quando nos reunimos em torno do altar, eles podem estar conosco e assim reforçar nosso relacionamento com o mundo espiritual. Os novos altares circundam-se com a mesma trama de arqui-imagens que envolvia o sepulcro nas redondezas das plantações do Monte Sion. Está sanado, aqui, o abismo entre este e aquele mundo e, invisivelmente, floresce o jardim pascal onde nossa alma, como Maria Madalena, pôde ver o Ressurreto como jardineiro de um novo mundo. De dentro para fora a escuridão saturnina é iluminada pelo sol pascal.

 


CORRESPONDÊNCIAS COM A ÉPOCA ATUAL


O drama da Semana Santa, com sua graduação planetária, possui significado em qualquer tempo. Em momentos cruciais de transformação na história da humanidade este drama adquire importância atual em todos os seus detalhes. O que sucedeu em Jerusalém, historicamente, torna-se transparente para as arqui-imagens de validade eterna fundamental. Épocas inteiras podem reconhecer-se (no espelho desse drama). É o que sucede nos temporais apocalípticos da nossa época. Estamos atravessando uma Semana Santa em grande estilo.

A excitação e as comoções que agitam os povos, tanto as guerras quanto as que são sentidas apenas no íntimo das almas, têm sua origem apenas aparentemente no plano físico. Em realidade, elas nascem pelo ingresso poderoso, na existência terrena, de forças e entidades supra-sensíveis. A nova vinda do Cristo é como uma grande e cósmica entrada em Jerusalém. A humanidade sente em surdina o advento ruidoso do mundo espiritual. Nos brados de guerra e de paz da atualidade traduzem-se, misturados, os “hosanas" e os “crucifique-o”. No entanto, estando as almas aprisionadas pelos hábitos materialistas, o grito de ódio prevalece amplamente sobre o canto de louvor.

Nitidamente revela-se ao nosso redor a lei da segunda-feira santa. A vida espiritual tradicional entra em crise. Não vemos acaso tanta coisa que ainda há pouco parecia em plena flor e alta estima agora com o aspecto de uma árvore seca? Muitos templos estão ruindo e só permanece o que é autêntico. Implacavelmente o sol do destino expõe à luz do dia o que está obsoleto ou degenerado.

As forças marcianas acendem os fachos do Apocalipse. Quem consegue penetrar além da superfície dos fenômenos, reconhece que, por trás das lutas externas são travadas lutas espirituais. A luta da luz contra as trevas é travada por sobre as cabeças dos homens e na terra existe um grande perigo: que mesmo aqueles que, se estivessem suficientemente acordados poderiam lutar pela luz, desertam também para o lado das trevas. No obstante, um pequeno grupo a serviço do sol espiritual pode ser vitorioso. A estes será dada como outrora aos discípulos no Monte das Oliveiras - o eco espiritual de seus esforços, a visão apocalíptica através da qual poderão reconhecer o de suas árduas lutas e sofrimentos.

Cada vez mais inequivocamente os homens são colocados diante de decisões íntimas: ou encontram o caminho que leva à atitude sacramental da plenitude anímica ou sofrerão a maldição da inquietude, da angústia, do nervosismo, que os precipitará no abismo da loucura. Devem escolher entre Maria Madalena e Judas.

Sob o peso do destino não existe quase mais ninguém que, ao menos por instantes, não tenha estado perto do mistério da quinta-feira santa, com sua luz de esperança para o futuro. A questão é apenas se a consciência se mantém firme, se desperta como a de João, se submerge no torpor do sono getsemânico, como Pedro, que renegou o Senhor, ou se até mesmo sucumbe ao demônio como a do Judas, que o traiu.

O verdadeiro mistério de nossa época consiste na renovada presença do Cristo entre os homens. É possível perseguir as igrejas cristãs, exterminar o Cristianismo; o Cristo, ele próprio, pode apenas ser novamente flagelado, coroado de espinhos e crucificado. Isto acontece não só por parte dos adversários como também por parte dos próprios cristãos. Não surpreende que sol se cubra e os elementos se enfureçam. A ira de Deus flagela o mundo com o castigo de tempestades. Não obstante, o aspecto oculto, interior, de tudo isto é o infinito amor divino. O Cristo que é, ele próprio, o amor cósmico, morre mais uma vez para penetrar nesta terra, para salvação também daqueles que o perseguem e o crucificam.

Finalmente, toda a humanidade está esperando diante de um sepulcro. Começa a atual lei do sábado da Aleluia. As massas rochosas que mantêm sepultado o Cristo e, com ele a verdadeira imagem do homem, incluem não só as fabricas e os supermercados, mas também as igrejas. Tudo o que existe de enrijecido entre os homens é o próprio sepulcro rochoso. Encontramo-nos na véspera de uma manhã pascal ou terão sido em vão todas as provações e os sofrimentos? Poder-se-ia pensar que a humanidade, em meio às catástrofes que ela própria provocou, esteja mais afastada do que nunca do mistério Ressurreição. Entretanto, naquela época também houve terremotos até na madrugada do domingo de Páscoa e, portanto, podemos esperar que nos tremores da terra e da alma que abalam nossa época também esteja o Anjo do Senhor, que afastará a pedra do sepulcro.


APÊNDICE


O MOTIVO DA "SAÍDA" NA NOITE DA QUINTA-FEIRA SANTA


Os quatro evangelhos não coincidem quanto ao momento da noite da quinta-feira santa em que Jesus deixa o cenáculo e começa o caminho do Getsemane. Temos aí um exemplo de como a linguagem das contradições nos evangelhos revela importantes mistérios, mesmo quando as contradições se referem a detalhes aparentemente não essenciais.

Em Mateus e Marcos a cena da Santa Ceia é descrita de forma bastante coincidente. Após sentarem-se á mesa, Jesus e os discípulos relatam primeiro a anunciação da traição com as perguntas e respostas que se seguem. Esta conversa é a zona de prova após a qual se realiza o mistério sacramental: bênção e distribuição de pão e vinho. Segue-se a misteriosa palavra de Jesus, que ele não mais beberá da parreira até que o faça de novo no reino de Deus. Logo após os comensais cantam o hino e Jesus sai de casa com os discípulos em direção ao Monte das Oliveiras. É importante, aqui, que nos dois primeiros evangelhos a conversa do cenáculo é, de certo modo, continuada a caminho de Getsemane. Se no cenáculo foi anunciada a traição, agora é anunciada a negação do Cristo por Pedro. Antes disto, o Cristo diz aos discípulos: “Nesta noite todos vos aborrecereis comigo”. Além disto, é pronunciada a severa palavra da distração, derivada em grego do nome da escuridão. É verdade que a ela se segue logo a anunciação da Páscoa. Jesus diz aos seus discípulos que, após sua ressurreição, ele os precederá a caminho da Galiléia. Como Pedro se defende, dizendo que ele não se aborrecerá com o Cristo, este vai além, anunciando a negação. Segue-se a cena de Getsemane.

As conversas apenas insinuadas com breves palavras têm significados diferentes conforme ocorram antes ou depois da saída. A saída em si, assustando os discípulos, deve ter provocado um estado de enlevo em suas almas. A palavra da distração ainda acentua mais este enlevo. A compreensão deste fato significa uma chave para a compreensão da misteriosa frase sobre a Galiléia: esta frase foi dita a almas em estado de enlevo e seu conteúdo também se refere a um tal estado. Apenas são totalmente diversas as paisagens da alma para as quais levam o enlevo do momento e o enlevo posterior, pascal. É isto justamente o que se reflete no enigmático surgimento do motivo galileico, cujo sentido não é exterior, mas interior. A anunciação da negação, também feita a almas em estado de enlevo como que se refere, ao mesmo tempo, a um futuro estado de enlevo. Primeiro trata-se inteiramente de um enlevo cujo principal portador será Pedro. Talvez seja o hálito de mistério que já pode ser percebido na frase sobre o beber  a parreira, um primeiro anúncio de que todas as palavras e todos os processos desta noite desembocarão em um enlevo inicialmente trágico, mas depois através da morte do Cristo, salvador.

No evangelho de Lucas, as conversas da Ceia se tornam mais detalhadas. Forma-se já uma transição para os grandes discursos de despedida do evangelho de João. O importante é que Lucas não divide os pronunciamentos em dois grupos, antes e depois da saída. Em Lucas, aquilo que Marcos e Mateus relatam como tendo sido falado a caminho de Getsemane, já é enunciado no cenáculo. Chama especialmente a atenção o fato de até mesmo a negação ser anunciada antes da saída do cenáculo. À saída, segue-se diretamente a cena de Getsemane. Em compensação, todas as palavras citadas por Lucas em relação à Ceia são de um caráter enigmático que só se elucida se forem compreendidas como tendo sido faladas a almas em estado de enlevo. Até mesmo a estranha discussão entre os discípulos sobre quem seja o maior, particularmente enigmática por ter lugar após a comunhão, leva logo às palavras do Cristo que, em Lucas, representam o paralelo do lava-pés do evangelho de João, devendo ser entendida como um sintoma do enlevo que está se apoderando dos discípulos. Com maior razão ainda, o pronunciamento sobre as duas espadas e as perguntas e respostas que o acompanham, só pode se tornar compreensível se o considerarmos como sendo palavras de enlevo. Interiormente a saída já ocorreu, tanto para Jesus quanto para os discípulos, embora Lucas só relate mais tarde a saída física do cenáculo. Só assim se explica o aparentemente insignificante, mas em realidade, muito elucidativo contraste entre Lucas e os dois primeiros evangelhos, ou seja, Lucas relata o anuncio da negação como tendo sido feito no cenáculo e não rio exterior. Em Lucas, a saída física está relatada em horário posterior, porque Lucas torna mais explícito, em sua descrição, o processo interior da saída.

A metamorfose apenas iniciada no evangelho de Lucas, no de João se intensifica. É verdade que João nada diz sobre a instituição do pão e do vinho, mas na descrição do lava-pés e da ceia do Passah, aqui salientados em seus detalhes, enquanto nos outros três evangelhos não são mencionados, estão entretecidos os anúncios da traição e da negação. Depois, antes de serem relatadas a saída exterior e a ida para Getsemane, o evangelho de João nos conduz por três capítulos ao longo dos assim chamados grandes discursos de despedida, que culminam com a oração. Por causa disso, o anúncio da negação dirigido a Pedro, que em Mateus e Marcos é feito no caminho para Getsemane e em Lucas, no interior do cenáculo, recua um grande passo para o interior.

O evangelho de João é o que menos deixa perceber o deslocamento do nível de consciência provocado pelo estado de enlevo. O transcurso Físico dos acontecimentos nele é mais nitidamente constatável, o que significa que as palavras e os fatos são por ele apreendidos com a consciência desperta e racional, enquanto nos outros discípulos, e depois também nos três evangelistas, provocam um estado de enlevo.

Tanto mais emocionante é reconhecermos como, no evangelho de João, o tema da saída ainda ressurge mais uma vez de maneira significativa: no início do 18º capítulo, antes das palavras “e quando Jesus acabou de falar assim, saiu com os discípulos” já lemos, em meio aos discursos de despedida, no final do 14° capítulo: “Levantai-vos e partamos deste local” ou, na tradução de Rudolf Steiner: “Se vós também estais preparados, podemos tranquilamente deixar este local”. Se esta frase de Jesus não for desprezada como insignificante, veremos que ela é capaz de despertar a seguinte concepção: os três últimos capítulos dos discursos de despedida em João teriam sido falados enquanto Jesus e os discípulos já se levantavam da mesa preparando-se para sair da casa. A maior parte dos discursos de despedida seria, portanto, pronunciada na soleira da porta. Não poderíamos ter uma descrição mais explícita da saída interior que precedeu a saída física, do que esta do final do 14º capítulo do evangelho de João. Os discursos de despedida ressoam da alma do Cristo que já começou a desligar-se do corpo; e nas almas dos discípulos, enlevados pelo medo e pelo susto, só é captado, desses discursos, um reflexo relampejante ainda registrado de certa forma em Lucas, mas ausente na descrição sumária, puramente exterior, de Mateus e Marcos. Somente na alma de João que, desde a recente ressurreição do Lázaro, habita dois mundos, é capaz de manter o equilíbrio entre o enlevo do Cristo e o enlevo dos discípulos. Ele acompanha, compreendendo, a alma do Cristo que se revela ao desligar-se sem ser arrastado para o enlevo sombrio, escorpiônico, dos outros discípulos e, por isso, é capaz de captar as palavras sagradas daquela instrução na Santa Ceia.

 

DA VISÃO DO CRISTO


Em comparação com os três primeiros evangelhos, predominantemente imaginativos, o evangelho de João se apresenta como propriamente inspirativo. Enquanto a espiritualidade dos outros culmina em imagens, o elemento do evangelho de João é a palavra como tal. Ele dispõe de cunhos verbais em si bastante inaparentes, mas que conferem acentuação luminosa a certos pontos culminantes da vida do Cristo. Pela repetição destas fórmulas “joaninas” surgem figuras plácidas (silenciosas) que evidenciam importantes etapas e desenvolvimentos interiores.

Entre essas expressões verbais, uma das mais íntimas é a que normalmente se traduz por: “ele ergueu seu olhar”. Repete-se em três trechos: cap. 6,3 - antes da alimentação dos 5.000; cap. 11,41 - antes da ressurreição do Lázaro: cap. 17,11 - antes da oração.

Antes da alimentação dos 5.000, a locução somente caracteriza conteúdo perceptivo. Jesus vê chegar a ele uma multidão. Antes da ressurreição do Lázaro e antes do final solene dos discursos de despedida, estas palavras introduzem palavras de oração, como se o erguer do olhar contivesse uma especial orientação em direção ao Pai: “Pai, dou-te graças”, “Pai, chegou a hora”. Enquanto se acredita que Jesus viu uma multidão faminta através de uma percepção física, existe um abismo separando o primeiro trecho dos dois outros.

Entretanto, este modo de compreender é provado errôneo já pelo fato de não estar escrito ele "vê", mas ele “tem a visão" da grande multidão. Nos três trechos, a fórmula exprime a entrada do Cristo em estado de visão supra-sensível. A tradução exata é a que R. Steiner deu, de João 17, 1: “Jesus transportou-se para a visão espiritual”. Nisto, o importante é saber que esse estado não leva apenas a percepções, mas também ao contato com as realidades contempladas e às origens superiores das forças. Cada vez efeitos especiais resultam dessa visão que, de fato, é muito mais do que um simples erguer de olhos devoto.

Os três trechos têm um prelúdio no 4º capítulo, onde Jesus convida os discípulos a erguerem seus olhos: “Olhai os campos, como estão brancos para a safra”. (4, 35). Jesus abre aos discípulos a visão interior do estado da humanidade.

O primeiro dos três trechos se relaciona diretamente com isto: a multidão que o Cristo vê chegar não está fisicamente presente; trata-se da humanidade futura que aparece em espírito. A alimentação é antes uma provisão de forças para os discípulos em sua missão apostolar do que uma manifestação momentânea de gente presente. Nos outros dois trechos podemos perceber que a visão do Cristo está intimamente ligada ao estado de oração de sua alma e que, de modo geral, oração e visão se ligam por íntima relação causal.

Os três trechos não são idênticos entre si. Apresentam uma gradação crescente em relação à esfera sobre a qual se dirige a visão e cuja força é invocada.

No final, o fruto da visão do Cristo não é tão perceptível como na alimentação dos 5.000 ou na ressurreição do Lázaro. Mas não é menos importante: é todo o abençoado destino futuro dos discípulos.